sábado, 5 de março de 2011

O POVO DA “TERRA SEM POVO”

Vitória sionista foi o triunfo da “interpretação” sobre a “presença”. Mas a história e a cultura palestinas teimam em existir e construir um Estado soberano.
Uma terra sem povo para um povo sem terra  era o lema do movimento sionista, que germinou na Europa no início do século XX. A “terra sem povo” era a Palestina; o “povo sem terra”, obviamente, era o judeu.
A premissa era completamente falsa.
A Palestina nunca foi uma “terra sem povo”. Ao contrário, foi ocupada desde pelo menos o século VII por uma imensa maioria de árabes muçulmanos e também por minorias de árabes cristãos e judeus.
Isso significava, entre outras coisas, que os judeus de origem européia só poderiam ocupar a Palestina mediante a expulsão dos habitantes árabes daquela região. E isso foi feito, como reconheceu ninguém menos que o próprio general Moshe Dayan, comandante das tropas israelenses durante a Guerra dos Seis Dias.
“Nós viemos para este país que já era habitado pelos árabes, e aqui estamos estabelecendo um Estado hebreu, isto é judaico. Em áreas consideráveis do país, compramos as terras dos árabes. Cidades judaicas foram construídas no lugar das cidades árabes. Vocês nem sabem o nome das cidades árabes, e eu não os culpo por isso, porque nem existem mais os antigos livros de geografia; mas não apenas os livros não mais existem, como as cidades árabes também desapareceram.” Dayan deu essa declaração ao jornal israelense Haaretz de 4 de abril de 1969. A declaração foi citada pelo professor palestino Edward Said, em seu livro The Question of Palestine. Temos, então, o seguinte problema: o movimento sionista europeu foi obrigado a negar a existência dos árabes palestinos, como forma de justificar e legitimar um suposto “retorno” do povo judeu ao seu lar de origem, a Palestina. Mas como negar a existência de todo um povo?
O próprio Said dá uma resposta:
“Devemos entender a luta entre palestinos e sionistas como uma luta entre a presença e a interpretação, a primeira sendo sempre derrotada e eliminada pela segunda”. E como a “interpretação” sionista ocultou a “presença” árabe palestina? Simples: por um jogo de mobilização de preconceitos culturais.
Os árabes, do ponto de vista ocidental, constituíam um povo “atrasado”, uma civilização “estranha”, que adotava outros deuses, outras vestimentas, outro alfabeto. Os sionistas, ao contrário, eram cidadãos europeus (ainda quando provenientes da Europa oriental). Assim como, à época das Grandes Navegações, os habitantes originais das Américas eram vistos como “selvagens” – prova disso é que não conheciam as letras efe, ele e erre, e não tinham, portanto, “nem fé, nem lei, nem rei”  também os árabes eram descritos como uma civilização exótica. Eram seres desencarnados, que não possuíam história, despojados de seu passado, seu presente e seu futuro. Eram não-seres.
E assim se construiu o mito de uma “terra sem povo”. O movimento sionista contava com a simpatia de uma forte percepção eurocêntrica do mundo, que condicionava o olhar até mesmo dos intelectuais e filósofos de esquerda, como Karl Marx, que, por exemplo, saudou o “processo civilizatório” do capitalismo inglês durante a colonização da Índia.
Consumada, assim, a aparente vitória da “interpretação” sobre a “presença”, os líderes sionistas podem até se permitir falar do assunto com uma certa franqueza, como fez Moshe Dayan. Mas a “presença” de uma história e de uma cultura não se deixa enterrar tão facilmente.
A memória de todo um povo que teima em existir foi a base sobre a qual se construiu a Autoridade Palestina, forma embrionária do Estado que resgatará para esse povo o direito à própria história.
Boletim Mundo Ano 8 n°6

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