Newton Carlos
Como um projeto político, a globalização está morta. A retórica do governo Clinton, que resultou no aparecimento da expressão nation-building, nome dado a operações “humanitárias” tipo criação da Bósnia como nação, é substituída pela ênfase nos interesses nacionais dos Estados Unidos. Não se trata de assumir posições de isolamento, mas de só intervir fora das fronteiras americanas quando houver crença de que estão em jogo questões vitais.
O governo George W. Bush brecou sumariamente o emprego de tropas da OTAN em ajuda aos macedônios sob fogo da etnia albanesa.
A retirada militar dos Bálcãs foi promessa da campanha republicana. “Com Bush, os interesses americanos não incluem mediações de paz em áreas secundárias”, escreveu o jornal The Guardian, de Londres.
O raciocínio vigente é o seguinte: se os Estados Unidos são arrogantes, provocam ressentimentos; se são humildes, mas fortes, impõem respeito. O poder militar como instrumento maior, até dispensando os outros, do exercício da liderança no mundo. Militarismo na vanguarda da diplomacia. O Pentágono lançou-se numa ampla revisão da política de defesa, que vai do deslocamento de armas nucleares ofensivas à própria estrutura das forças armadas. Os gastos anuais devem aumentar de US$ 295 bilhões para US$ 310 bilhões já em 2001.
O principal articulador da revisão, Andrew W. Marshall, não dá muita importância a tanques e porta-aviões como espinhas-dorsais de forças terrestres e marítimas.
Ele encampa projetos mirabolantes, como o National Missile Defense (NMD), a construção de um escudo espacial de proteção contra foguetes, capaz de desestabilizar todo o sistema de controle armamentista. Esgotou-se a Guerra Fria entre os EUA e a antiga URSS. Surgem, segundo Washington, novas ameaças, os “países “malfeitores” como Iraque, Líbia, Irã e Coréia do Norte , e o terrorismo.
Mas, na visão dessa corrente incrustada no governo Bush, o alvo principal passa a ser a China. Marshall é conhecido sinófobo. Escreveu que “o Pacífico é o mais provável grande teatro de operações do século XXI, na medida em que a China se torna mais poderosa e a Rússia, menos” . O próprio Bush redefiniu as relações com a China, passando a denominá-la “competidor estratégico”.
Há cenários que prevêem a extensão da cobertura do escudo espacial até Taiwan. A China reagiu anunciando negociações com a Rússia para a montagem de um tratado e uma aliança estratégica envolvendo armas e programas espaciais. Caso essa aliança se formalize, será a primeira na qual a China se mete em muitas décadas.
Os Estados Unidos vão rever seus programas de ajuda militar. A linha dura do governo Bush, assentada no vice-presidente Dick Cheney e com forte presença no Pentágono, quer quebrar regras e comportamentos “moderados” em relação a Taiwan. As leis norte-americanas mandam que os Estados Unidos dêem a Taiwan meios de defesa, mas nada dizem sobre a hipótese de um ataque chinês contra a “ilha rebelde”.
Até hoje, em ocasiões críticas, a atitude de Washington tem se limitado a deslocamentos de unidades aeronavais para as proximidades do Estreito de Taiwan.
Em 1982, ainda como prolongamento da “diplomacia triangular” que completa 30 anos, os Estados Unidos se comprometeram a reduzir o fornecimento de armas a Taiwan. A promessa não foi inteiramente cumprida. No ano passado, a Câmara dos Deputados, sob controle republicano, lançou o Taiwan Security Enhenacement Act (TSEA), determinando o estabelecimento com a ilha de relações militares “mais formais”.
A China reagiu indignada e o então presidente Clinton conseguiu desfazer o bote, procurando uma política de acomodação com Pequim. Em seu primeiro encontro com o presidente chinês Jian Zeming, na reunião da comunidade econômica do Pacífico, Clinton evitou qualquer referência a direitos humanos. Nada do ritual que se repetia em todo encontro de diplomatas americanos com autoridades chinesas, o da leitura, um por um, dos nomes de dissidentes presos. O ex-secretário de Estado, Warren Christopher, falando na universidade de Fudan, em Xangai, disse conciliatoriamente que “em direitos humanos, cada nação tem sua própria história e exigências”.
Madeleine Albright, sucessora de Christopher, ainda com Clinton, dizia que EUA e China precisavam entender-se, porque disso depende “a estabilidade e prosperidade” no século XXI. Com aval norte-americano, a China negocia o seu ingresso na Organização Mundial de Comércio (OMC). Mas agora, com Bush, é possível que o TSEA reapareça com força maior, contando talvez até com apoio da Casa Branca. Razão pela qual o presidente chinês, Jiang Zemin, recebeu em Pequim repórteres e editores do The Washington Post.
Taiwan quer comprar dos americanos, de início, quatro contratorpedeiros, equipados com radares de longa distância, avaliados cada um em US$ 1 bilhão. “Nós nos opomos terminantemente à venda a Taiwan de armas avançadas. Se isso acontecer, será em detrimento das relações entre China e Estados Unidos”, disse Jiang ao Post. Ele insiste em que a cooperação entre China e Estados Unidos parte de interesses estratégicos comuns. Declara que Taiwan é ponto-chave nas relações entre os dois países e que “qualquer erro pode custar caro aos americanos”.
O governo Bush daria importâncias a essas entrevistas, mesmo com a pompa da participação de estrelas do Washington Post, entre as quais os chefes da redação?
Kenneth Lieberthal publicou artigo a respeito na revista Foreign Affairs. Lembra que, na Guerra Fria, o anticomunismo tinha em si mesmo “força moral” capaz de justificar qualquer gesto de Washington, desde que se tratasse de combater a antiga URSS. O reconhecimento da China, na década de 1970, partiu daí os Estados Unidos precisavam compensar a derrota no Vietnã por meio de contrapesos asiáticos hostis a Moscou .
Na época, os chineses destilavam ódios contra o então “Estado-guia” do comunismo.
O jogo agora é outro. A URSS já era, sentencia Lieberthal. E não há nada que justifique compromissos com Pequim “ou com quem quer que seja”.
Uma coleira de ferro para o Tibete
Em fevereiro, o governo chinês aprovou o projeto de construção de uma ferrovia entre Golmud, na província ocidental de Qinghai, e Lhassa, a capital da região autônoma do Tibete. A estrada, que será a mais elevada do mundo, atravessará as imponentes cordilheiras que formam o Himalaia, num trajeto de 1.125km. Quando estiver pronta, em sete anos, permitirá a conexão ferroviária desde Pequim até Lhassa, numa distância de quase quatro mil quilômetros.O Tibete foi ocupado pela China em 1950, logo após a revolução comunista. A revolta de 1959, reprimida com violência pelas forças chinesas, rompeu a tensa convivência entre os ocupantes e a elite religiosa tibetana. Então, o Dalai Lama, chefe político e espiritual do budismo do Tibete, refugiou-se na Índia, passando a dirigir a “resistência pacífica” contra o domínio chinês.
Desde a revolta, Pequim combina a repressão aos dissidentes com a concessão de autonomia administrativa limitada e uma flutuante tolerância religiosa. Mas a estratégia de longo prazo consiste em integrar demográfica e economicamente o Tibete. A “ferrovia das nuvens” é o eixo desse empreendimento. Sua função é romper o isolamento tibetano, amparado nos dados da geografia física, promovendo fluxos econômicos e correntes migratórias chinesas.
Boletim Mundo Ano 9 n° 3
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