Claudio Camargo
Temendo a desestabilização da região mais militarizada do mundo, Estados Unidos, China e Japão apoiam degelo entre as Coréias do Norte e do Sul
Já se disse que geografia é um destino do qual é impossível escapar. Poucos países ilustram tão bem essa definição quanto a Coréia. Localizada entre a China e o extremo sudeste da Rússia e projetando-se para o Japão, a península coreana teve uma importância estratégica tamanha, ao longo deste século, que acabou virando peça fundamental no tabuleiro geopolítico asiático. As regras do jogo sempre foram ditadas por seus poderosos vizinhos – China, Japão e Rússia (depois, União Soviética) e também pelas potências imperialistas ocidentais (Estados Unidos e Grã-Bretanha).
Tributária da China durante a maior parte de sua história, a Coréia passou a ser área de influência japonesa depois que o Império do Sol Nascente impôs derrotas militares à China (1894-1895) e à Rússia (1905). Anexada em 1910, a península ficou sob o jugo das baionetas de Tóquio até 1945, quando foi ocupada por tropas soviéticas, ao norte, e americanas, ao sul. A divisão do país consolidou-se com a Guerra da Coréia (1950-1953), uma tentativa do regime comunista norte-coreano, apoiada diretamente por chineses e indiretamente por soviéticos, de reunificar a península à força.
O “racha
O envio de tropas norte-americanas à região, sob a bandeira da ONU, frustrou a tentativa norte-coreana.
O resultado foi a divisão do país em dois Estados, através do paralelo 380 N, e a transformação da península numa das áreas mais militarizadas do mundo. Desde essa época, a margem de manobra das Coréias frente às grandes potências tem sido mínima.
A histórica reunião de cúpula entre o ditador norte-coreano, Kim Jong-il, e o presidente sul-coreano, Kim Dae-jung, na capital da Coréia do Norte, em junho último, atende aos interesses dos dois líderes de aproveitar o espaço aberto, com o fim do mundo bipolar, para romper esse círculo de ferro. Mas a iniciativa se mantém nos limites do jogo geopolítico asiático.
Se nessa tentativa de ampliar o espaço de manobra destaca-se o empenho do presidente sul-coreano, Kim Dae-jung, um ex-preso político que sempre defendeu a reaproximação com o Norte, é igualmente fundamental o papel do enigmático dirigente comunista Kim Jong-il, pintado pela mídia ocidental apenas como tirano recluso e extravagante. O surpreendente show de public relations que este herdeiro de Stalin deu ao receber seu “colega” do Sul encobre uma ousada estratégia diplomática que vem sendo levada a cabo desde a morte de Kim Il-sung, pai de Kim Jong-il e “Pai-Fundador da pátria”, em 1994. Trata-se de armar o país até os dentes para arrancar concessões do inimigo.
O contraste entre os dois lados não poderia ser maior . A Coréia do Sul, um dos “Tigres Asiáticos”, mesmo depois do desastre financeiro de 1997, é uma significativa economia industrial. A Coréia do Norte, um dos países mais pobres do continente, atravessou nos três últimos anos uma pavorosa crise de fome. Mesmo assim, o regime comunista continua mantendo um dos mais bem armados exércitos do planeta e torra nada menos que 27% do PIB em gastos militares. Não é à toa que Tio Sam ainda mantém 37 mil soldados na Coréia do Sul.
Além de possuir um arsenal estimado em cinco mil toneladas de armas químicas e dez diferentes tipos de armas biológicas, o Norte desenvolveu uma avançada tecnologia de mísseis de longo alcance. Em 1998, testaram o Taepodong, um míssil de três estágios que sobrevoou o Japão e mergulhou no Pacífico. De acordo com analistas do Pentágono, a Coréia do Norte já estuda uma versão mais avançada desse míssil, com alcance para atingir a Califórnia. Mísseis como esses poderiam transportar bombas atômicas, o que deixa americanos e japoneses de cabelos em pé.
A reação ocidental tem sido cautelosa. Por um lado, o Pentágono tenta desenvolver um sistema de defesa anti balístico, que serviria para proteger o território americano de um ataque de “Estados terroristas”, como Washington caracteriza o regime de Kim Jong-il. Por outro lado, Tio Sam abrandou as sanções econômicas impostas à Coréia do Norte e autorizou o antigo inimigo a comprar produtos americanos, em troca da promessa de encerramento dos testes com os mísseis Taepodong. Em 1994, os norte-coreanos já haviam concordado em suspender seu programa nuclear em troca do fornecimento, por países ocidentais, de duas usinas atômicas para geração de eletricidade.
Temores na China
Os chineses não gostam nada da turbulência na península coreana. O projetado sistema anti balístico americano poderia originar um “guarda-chuva” de defesa de Taiwan, complicando ainda mais o sonhado empreendimento de reunificação nacional. Além disso, a ameaça militar norte-coreana pode funcionar como pretexto para que americanos e japoneses aumentem ainda mais suas forças militares na região. Há também considerações geopolíticas e econômicas mais amplas. A desestabilização do regime de Kim Jong-il faria explodir o crescente fluxo de refugiados norte-coreanos através da fronteira chinesa. E um conflito militar na península destruiria, por um bom tempo, o fluxo de mercadorias e capitais em toda a esfera da Ásia oriental. Por isso tudo, os dirigentes chineses abençoaram a reunião pioneira dos chefes de Estado rivais da Coréia.
A “cúpula dos Kims” pode ter sido o primeiro passo na reunificação coreana. O tema não é mais tabu para Seul ou Pyongyang, nem para a China e os Estados Unidos. Mas o empreendimento promete ser bem mais difícil do que foi a reunificação alemã, há dez anos. Afinal, no caso da península coreana, quem vai se dispor a pagar a conta?
Boletim Mundo Ano 8 n° 4
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