Elaine Senise Barbosa
Os Budas gigantes de Bamyan, destruídos pelo Taleban no Afeganistão, assinalavam o encontro de civilizações na porta de entrada do Oriente.
O Afeganistão voltou a ocupar as manchetes dos jornais em todo o mundo.
Depois de retirar as mulheres das escolas e atividades profissionais, destruir televisores e vídeos, submeter o país ao mais rigoroso controle religioso, o regime fundamentalista do Taleban anunciou que as duas estátuas gigantes de Buda (com 53 e 36 metros de altura), construídas entre os séculos III e VI, haviam sido destruídas, apesar de todos os protestos da opinião pública internacional e das tentativas da ONU de salvá-las do vandalismo oficial. Mas as ações do Taleban são exceções à tradição islâmica, marcada pela tolerância e pela assimilação das culturas com as quais estabeleceu contato tanto é que as estátuas sobreviveram mais de um milênio após a expansão muçulmana para a Ásia Central, no início do século VIII.
Situado no coração da Ásia Central, o Afeganistão é um Estado criado pelos interesses imperialistas europeus.
Suas fronteiras foram traçadas em 1893 por um oficial britânico, com o objetivo de criar um Estado-tampão destinado a separar os domínios coloniais britânicos e russos. Assim, reuniram-se grupos etnoculturais diversos, com histórias ligadas às dos países vizinhos, como o Tadjiquistão, o Uzbequistão e o Paquistão. Valeria a frase dos nacionalistas italianos, da mesma época: feito o Estado, faltava fazer a nação.
A história do Afeganistão foi marcada pelas cicatrizes da geografia física. O país é cortado diagonalmente por dois conjuntos montanhosos, separados por um extenso vale fluvial onde corre o rio Cabul, tributário do rio Indo. É um corredor estratégico, pois ali está a “porta” que liga as mais antigas civilizações. No século I a.C., o Reino Cita estabeleceu a ligação entre a China, a Índia Indo-Gangética (a atual Índia setentrional e o Paquistão), a Pérsia (atual Irã) e o Mediterrâneo a mítica Rota da Seda.
A importância estratégica desta passagem foi reconhecida desde a Antigüidade, quando os persas anexaram a região. No século IV a.C. Alexandre, o Grande, percorreu o caminho que seria a Rota da Seda para conquistar o vale do Indo. Pouco depois, a Índia Indo-Gangética foi unificada pela Dinastia Maurya (321-185 a.C.), cujo principal governante, Asoka, tornou-se grande divulgador do budismo.
A religião budista deriva da doutrina estabelecida por Shidarta Gautama (cerca de 560-438 a.C.), um abastado hindu que abandonou tudo o que tinha em busca da resposta para a libertação dos sofrimentos terrenos. Shidarta Gautama, Buda, é o Iluminado. Um de seus ensinamentos versava sobre o equívoco que havia na adoração de imagens e deuses. Ele jamais quis ser adorado e, de fato, as primeiras imagens surgiram apenas alguns séculos após a sua morte.
A força do budismo estava justamente em abalar os pilares da religião védica da Índia, baseada na adoração ritual de inúmeros deuses, no poder dos sacerdotes (brâmanes) e na diferença social cristalizada pelo sistema de castas. Muitos governantes da Índia apoiaram o budismo para minar o poder dos brâmanes.
O budismo espalhou-se pela Ásia entre os séculos III a.C. e VII, entrando na China pela Rota da Seda. O intercâmbio era intenso entre a China e a planície do Gânges, terra santa do budismo, onde os crentes iam peregrinar e comerciar.
A cidade de Cabul, capital do atual Afeganistão, era o centro do reino responsável por essa comunicação. O Passo de Khyber, na entrada da planície do Gânges, era a porta de toda a rota do Oriente. A fortuna dos que controlavam a região era enorme.
Foi assim que, por volta do século III, monges budistas instalaram-se em Bamyan, onde escavaram as altas encostas que circundam o vale e construíram centenas de celas e salões, cujos adornos sintetizavam as diversas influências culturais difundidas através da rota. As duas estátuas gigantes eram o ponto alto. Ricamente decoradas, com suas cabeças douradas, podiam ser vistas de longe e causavam forte impressão nos viajantes. O local rapidamente tornou-se um dos principais centros de peregrinação religiosa.
De certo modo, os Budas gigantes sinalizaram a fronteira entre dois mundos: o das estepes montanhosas ocidentais e o da Ásia indochinesa dos grandes rios.
A expansão islâmica para a Índia Indo-Gangética e para a Ásia Central provocou o recuo do budismo . Depois, através da Rota da Seda, o islamismo ganhou o oeste da China. Em sentido contrário, Gengis Khan, no século XIII, usou a velha rota em seu avanço sobre o Ocidente. Nos séculos XVI e XVII, a região passou a ser disputada pelo Império Mogol, da Índia, e pelo Império Persa xiita.
Esses conquistadores islamizados adotaram políticas de tolerância em relação às demais religiões, sob pena de perderem o controle de vastas áreas dos seus impérios.
Na Idade Contemporânea, o Afeganistão continuou a enfrentar a sina ligada à sua condição de passagem e fronteira.
No século XIX, foi a disputa colonial anglo-russa.
No século XX, o conflito entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética.
A invasão soviética de 1979 destinava-se a estabelecer um cinturão de estabilidade em torno das fronteiras do Estado comunista. Mas os modernos equipamentos de guerra de Moscou foram impotentes diante dos guerrilheiros islâmicos (mujahedins), financiados pelos Estados Unidos, a China e o Paquistão.
Quando a União Soviética se retirou, em 1989, os grupos guerrilheiros islâmicos mergulharam o país em guerra civil.
O Taleban nasceu em meio à guerra civil, nas escolas islâmicas do Paquistão.
Os “guerreiros da fé” do Taleban derrotaram os grupos rivais e tomaram Cabul em 1997. De lá para cá, as suas iniciativas têm surpreendido o mundo. Mas, vejamos sob a ótica deles. Primeiro: como não existe clero oficial no islamismo, a interpretação dos textos sagrados é livre. Segundo: o rigor na aplicação da lei islâmica (a sharia) destina-se a criar uma identidade nacional para o povo afegão. Terceiro: se o empreendimento der certo, o Taleban desponta no mundo islâmico como alternativa de fundamentalismo sunita capaz de rivalizar com o fundamentalismo xiita dos aiatolás do Irã. E o que desejam os fundamentalistas? Promover a unidade da umma – a verdadeira comunidade dos crentes – e submeter todo o Islã a um governo comum.
Boletim Mundo Ano 9 n° 3
Nenhum comentário:
Postar um comentário