Deng Xiaoping (1904-1997), sucessor de Mao Tsetung, a partir de 1976, no posto de comandante supremo da ditadura do Partido Comunista Chinês (PCC), foi o verdadeiro responsável pelo massacre, em 4 de junho de 1989, de pelo menos dois mil jovens estudantes que ocupavam a Praça da Paz Celestial (a história sempre tem suas ironias), no centro de Pequim, onde fica a sede do governo. Deng foi o último grande representante da “velha China”, governada por uma linhagem de políticos que participaram da revolução comunista de outubro de 1949, liderada por Mao.
A “nova China”, modernizada, aberta ao capitalismo, com os olhos voltados para o desenvolvimento tecnológico e para o mercado mundial, quer distância de seu próprio passado autoritário.
Esta, pela menos, é a versão que transparece de um espetacular documento histórico, recentemente revelado na forma de livro, lançado nos Estados Unidos com o título Tianamen Papers (Documentos de Tianamen, nome chinês da Praça da Paz Celestial). O trecho mais importante transcreve o debate travado em uma reunião do Politburo (comando) do Comitê Central do PCC, realizada em 17 de maio de 1989, que tomou a decisão de ordenar o ataque do Exército contra os jovens estudantes. Essa transcrição concentra toda a responsabilidade na figura de Deng Xiaoping e na “velha geração” do PCC, apesar da oposição demonstrada por um de seus líderes mais populares, Zhao Ziyang, então secretário-geral do partido:
Deng Xiaoping: Os nossos camaradas mais velhos Chen Yun, [Li] Xiannian, Peng Zhen, e, claro, eu também estão muito ansiosos com a atual agitação em Pequim. (...) Depois de pensar muito sobre isso, concluí que devemos convocar o Exército e decretar lei marcial em Pequim ou, mais precisamente, nos distritos urbanos de Pequim.
A lei marcial terá como objetivo acabar com os distúrbios de uma vez, e impor o rápido retorno à normalidade. Esta é a missão do partido e do governo. Estou, formalmente, submetendo essa proposta a vossas considerações.
Zhao Ziyang: É claro que é sempre melhor tomar alguma decisão do que ficar paralisado. Mas, camarada Xiaoping, será muito difícil, para mim, executar esse plano. É difícil acatá-lo.
Deng Xiaoping: A minoria deve se submeter à vontade da maioria!
Zhao Ziyang: Eu vou me submeter à disciplina do partido; a minoria acata a decisão da maioria.
A primeira coisa que se destaca, antes mesmo de se discutir o mérito do conteúdo, é o fato de que o trecho acima só poderia ter sido copiado por alguém que esteve presente à reunião, ou que teve acesso aos documentos mais secretos do partido. Dado o fato de que a cúpula é extremamente reduzida (um punhado de homens controla o destino de uma população de 1,2 bilhão de seres humanos), e que o acesso a estes documentos é rigorosamente controlado, é óbvio que não houve “vazamento” de informação. Essa hipótese não existe.
A informação foi propositalmente publicada pela cúpula chinesa atual.
O objetivo é livrar-se do pesado fardo representado pela hediondo crime de assassinato de dois mil jovens que, ao longo de abril e maio de 1989, lideraram manifestações gigantescas em Pequim, algumas com mais de dois milhões de participantes, para mostrar que já não mais suportavam a ditadura do partido único. Os atuais governantes sabem que, para se projetar como “superpotência” no século XXI, a China deve antes eliminar o estigma, internacionalmente estabelecido, de ser um país governado por uma ditadura corrupta, truculenta e assassina.
Deve mostrar-se disposta, pelo menos aparentemente, a acatar as mínimas regras de convívio civilizado. E, na política, o jogo de aparências é tudo.
É bem provável que o diálogo transcrito seja verdadeiro. Evidência disso é o fato de que Zhao foi colocado em prisão domiciliar poucos dias depois daquela funesta reunião. Mas, se existem verdades que, quando contadas pela metade, são piores do que qualquer mentira, este é um caso típico: o atual governo chinês conserva e prossegue o modelo criado por Deng. Não houve qualquer processo de ruptura entre a direção de Deng e a atual. Ao contrário, sua famosa filosofia “pragmática”, que consiste em conciliar a ditadura militar comunista com as práticas econômicas do mercado neoliberal, vem sendo plenamente aplicada. A “demonização” de Deng serve apenas para encobrir a verdadeira natureza e a vocação da atual ditadura chinesa.
Esta não foi a primeira, e com certeza não terá sido a última vez que a história é escrita, ou reescrita, com objetivos políticos precisos. Os falsificadores sabem que o que importa, na política, é a versão, e não os fatos. Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler, dizia que uma mentira repetida mil vezes acaba virando uma verdade. Os seguidores de Deng estão em boa companhia.
Boletim Mundo Ano 9 n° 3
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