segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Alca esbarra no Congresso Americano e na resistência brasileira

Newton Carlos
Se ser  latino-americano hoje não é (...) pertencer a um prolongamento da Europa além dos mares, o que é então ? A imagem da Pátria Grande e o sonho bolivariano não resistem às intrigas de fronteiras com as quais combina toda viagem internacional nessa América contudo fraternalmente latina. Ocidente inacabado ? Terceiro Mundo imperfeito ? Na África e na Ásia a imitação, o empréstimo afetam apenas a civilização material. Um núcleo religioso ou cultural resiste a todas as brilhantes tentativas de despojamento do mundo. No “continente deduzido”, ao contrário, tudo é de segunda mão. Os deuses e as palavras.
(Alain Rouquié, O Extremo-Ocidente: introdução à América Latina, São Paulo, Edusp, p. 343)
Em seu projeto de orçamento, depois de eleito pela primeira vez em 1993, Bill Clinton logo disse que a “mais alta prioridade” da diplomacia pós -Guerra Fria dos Estados Unidos seria fortalecer a economia americana, multiplicar a criação de empregos, “e o melhor meio de consegui-lo é tratando de abrir mercados e engrossando as pautas e faturas de exportações”.
Geoeconomia no lugar de geopolítica.
Ao lado do Conselho de Segurança Nacional, centro de decisões na aplicação da estratégia de “contenção” da antiga União Soviética, surgiu o Conselho Econômico Nacional, também com assento na Casa Branca, ao qual foi entregue o comando da batalha dos mercados.
Nessa batalha, na qual a presença da América Latina volta a se destacar com a reunião de cúpula do hemisfério que se realizou em Santiago do Chile, a China acaba de anunciar, em meio aos naufrágios da crise asiática, a sua “opção latino-americana”, a intensificação da procura de parceiros comerciais na América Latina, o que deve provocar sinal de alerta no Conselho Econômico Nacional dos Estados Unidos. Um antigo alto funcionário do Departamento de Estado, Robert Pastor, foi quem falou, em artigo na Foreign Policy, dos atrativos de opções valorizando a América Latina. O objetivo foi chamar a atenção para o fato de que o “esquecimento” da América Latina - pois Clinton ignorou o subcontinente em seu primeiro mandato - partia da “premissa falsa” de que os países ao sul do Rio Grande (à exceção do México, incorporado ao Nafta) têm pouca ou nenhuma importância.
A dependência dos Estados Unidos do comércio mundial dobrou. Já em 1991, lembrou Pastor, a América Latina comprou mais dos Estados Unidos que o Japão, ajudando a criar 650 mil novos empregos. Compras de 76 bilhões de dólares em 1993, duas vezes mais que em 1988. “A América Latina é a única parte do mundo onde os Estados Unidos conseguem dar amplos saltos comerciais”, declarou entusiasmado, na esteira de Pastor, um ex-secretário do Tesouro, Lloyd Bentsen. Recomendações para pressionar em favor do “fim dos nacionalismos e protecionismos”, da desregulamentação, da abertura de mercados que se tornariam mais atrativos com a recuperação econômica.
Em 1997, a Cepal registrou que “as exportações dos Estados Unidos para a América Latina aumentaram com maior rapidez do que para qualquer outra região do mundo” e previu que, até o ano 2010, “a América Latina se tornará um dos principais mercados de exportações dos Estados Unidos”. Em 2010, estaria absorvendo 15% das exportações americanas. Acontece que a idéia de construir uma “comunidade de livre comércio das nações democráticas das Américas”, lançada por Pastor e transformada em projeto pelo Conselho Econômico Nacional, enfrenta pesadas contra-pressões.
Os Estados Unidos colocaram a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) na cabeça da agenda das relações interamericanas na conferência de Miami, em dezembro de 1994. Mas a esperança de Clinton de fazer da Alca a estrela da reunião de presidentes em Santiago não conseguiu sustentação. Os primeiros golpes foram dados em maio do ano passado, no Foro das Américas, em Belo Horizonte, e partiram sobretudo do Brasil, contrário à “aceleração” do cronograma pretendida pelos Estados Unidos. Nada de negociações ou “acordos parciais” antes de 2005, ano de largada fixado em Miami. A América Latina, argumenta o Brasil, precisa antes adquirir melhores condições de associação, maior peso, maior poder de fogo e de barganha, para não ser tragada pelo poderio americano. Reservadamente o embaixador Rego Barros, secretário-executivo do Itamaraty, tem dito que nada feito antes de 2025. O “rumo natural”, segundo diplomatas brasileiros, seria uma área de livre comércio ampliada, talvez primeiro sul americana, a partir do Mercosul e do Pacto Andino, como quer o Brasil, e depois das Américas, como querem os Estados Unidos.
“Estamos primeiro integrando a América do Sul”, disse o presidente Fernando Henrique Cardoso em resposta a críticas do embaixador dos Estados Unidos em Brasília. O Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, prevê a abertura à totalidade da América Latina, o que é inviável, tal o grau de dependência do México, Caribe e América Central em relação aos Estados Unidos.
É viável, no entanto, a incorporação de países sul-americanos, tanto que já começaram as negociações com o Pacto Andino. A Argentina, apesar dos floreios com os Estados Unidos em política externa, do papo de “aliança especial” e do desejo manifesto de ter “relações carnais” com a superpotência do norte, juntou-se ao Brasil, seu principal parceiro comercial, na defesa do princípio de que qualquer negociação envolvendo a criação da Alca terá de ser feita por meio do Mercosul, em bloco. Em nenhuma circunstância a integridade do Mercosul poderá ficar ameaçada.
Já o Chile, desiludido com as dificuldades internas de Clinton para concluir acordos comerciais, desfez-se do sonho de se integrar ao Nafta, passou por cima de relações diplomáticas dificeis com a Argentina, e assinou acordo de livre comércio com o Mercosul.
A visita de Clinton à Venezuela, Brasil e Argentina, em outubro do ano passado, acrescentou graus de desfalecimento à “visão clintoniana de um hemisfério integrado pela boa-vontade e o comércio, do Alasca à Patagônia”, escreveu o Washington Post. Por mais que Clinton se esforçasse em saudar a emergência do Mercosul, permaneceu a convicção de que os Estados Unidos querem, em última instância, afogá-lo na onda da Alca.
Um mês depois, o Congresso americano negou a Clinton o fast-track, o poder de negociar acordos comerciais sem amarras parlamentares, o que colocou a Alca num “slow track”, em marcha reduzida, por um bom tempo.
“Os Estados Unidos ficaram em desvantagem para negociar acordos comerciais”, disse Johanes Heirman, economista da Cepal. Logicamente, fortaleceu-se a posição brasileira, partidária do “slow track”. As dificuldades internas de Clinton estão longe de se esgotar. A reação no Congresso ao fast-track teve entre seus legionários mais combativos o líder da bancada democrata, deputado Richard Gephardt, amigo de sindicatos convencidos de que é preciso “fechar” os Estados Unidos para manter empregos e não fazer acordos que levariam investimentos para países do Terceiro Mundo com trabalho mal pago, ausência de proteção social e sem constrangimentos ambientais. A AFL-CIO, a central sindical dos Estados Unidos, vive processo de renovação, sob liderança rejuvenescida, a de John Sweeney. Voltou a atuar com verbas generosas em campanhas de candidatos protecionistas e garante que o fast-track não passará.
O deputado Gephardt lidera corrente dentro do Partido Democrata, apoiada pela direção da AFL-CIO, que procura bloquear o vice, Al Gore, candidato de Clinton a próximo presidente, e promete restabelecer os “valores democratas”. O próprio Gephardt quer ser candidato.
“A América Latina é uma abstração”
Nas Américas, os primeiros projetos de integração econômica destinavam-se a unificar o conjunto latino americano.
A Guerra Fria acentuava a hegemonia dos Estados Unidos sobre o “hemisfério americano”, expressa através do pan-americanismo. Mas a descolonização afro-asiática e o nascimento da ideologia terceiro-mundista estimulavam uma nova consciência das disparidades entre as nações prósperas do Norte e as nações subdesenvolvidas do Sul. Em 1960, o Tratado de Montevidéu instituía a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc).
Apenas três anos antes, o Tratado de Roma tinha criado a Comunidade Européia. Esse foi um acontecimento decisivo para os líderes latino americanos que se engajavam no projeto da integração. Da Alalc, faziam parte os “Três Grandes” da América Latina - Brasil, México e Argentina.
Logo, ela abrangia quase toda a América do Sul (com exceção apenas da região guianense). A sua meta, ousada, consistia na gradual formação de um mercado comum.
Nessa época, marcada pela obsessão da industrialização e pelos modelos da “substituição de importações”, a Alalc parecia representar um instrumento para o crescimento econômico autônomo da América Latina. Tratava-se, em tese, de alargar para o espaço do subcontinente as estratégias econômicas aplicadas em cada um dos Estados nacionais, com ênfase na intervenção estatal e na proteção alfandegária dos mercados internos.
Simultaneamente à Alalc, nasceu o Mercado Comum Centro-Americano (MCCA). Sua finalidade consistia em superar os estreitos limites dos mercados consumidores dos pequenos Estados do istmo, promovendo o crescimento industrial. Pouco depois, as então colônias da Guiana e de Antígua e Barbuda firmavam um acordo que conduziria, em 1972, à formação do Mercado Comum do Caribe (Caricom), agrupando 12 micro e pequenos Estados que foram domínios britânicos.
Henry Kissinger, o influente secretário de Estado de Nixon, disse uma vez que “a América Latina é uma abstração”.
A Alalc fracassou porque, em grande medida, Kissinger estava certo. Os ambiciosos objetivos da organização chocaram-se desde o início com as desigualdades econômicas entre os Estados-membros.
As divergências entre os “Três Grandes” e os demais parceiros sabotaram as metas de integração. E, ironicamente, a própria ênfase nos mercados internos limitou o potencial de crescimento do comércio na área da Alalc.
O Pacto Andino nasceu como reação regional à estagnação da Alalc.
Criado em 1969 pelo Acordo de Cartagena, ele se propunha a avançar rápido na direção do mercado comum, reduzindo taxas alfandegárias internas, definindo tarifa externa comum e concluindo programas de desenvolvimento industrial. Embora tenha estimulado o comércio regional, o Pacto Andino jamais se aproximou das metas originais. A integração diferenciada de cada um dos países-membros na economia mundial realçava as divergências de interesses entre a Venezuela do petróleo, a Colômbia do café, a Bolívia do estanho e o Chile do cobre.
O Chile, pouco após o golpe militar de Pinochet, em 1973, retirou-se da organização para liberalizar a sua política de comércio internacional.
A Alalc deixou de existir, oficialmente, em 1980. Naquele ano, um novo Tratado de Montevidéu instituía a Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), reagrupando todos os Estados da sua fracassada antecessora. Mas a Aladi era outra coisa.
O tratado que a alicerça, embora conserve o princípio multi lateralista da criação de um mercado comum, contém metas muito mais modestas. Do ponto de vista prático, ele simplesmente estimula a concretização de acordos comerciais limitados e uniões aduaneiras entre os países-membros. No lugar da integração de toda a América Latina, o tratado da Aladi prevê, de forma flexível, a criação de blocos sub regionais, menores e mais eficazes.
O Mercado Comum do Sul (Mercosul) surgiu no marco jurídico do tratado da Aladi. Ele reuniu os “Dois Grandes” do Cone Sul ao Uruguai e ao Paraguai, em 1991. Cinco anos depois, o Chile e a Bolívia assinaram tratados de livre-comércio com o bloco. O Brasil aposta nisso: na capacidade de polarização e ampliação do Mercosul, para contrabalançar o peso esmagador do Nafta.
Boletim Mundo Ano 6 n° 2

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