Depois da dissolução da Federação Iugoslava, a dinâmica da desintegração avança para o interior da Sérvia, seguindo as linhas de clivagem étnica
Pouco mais de dois anos após o fim da Guerra da Bósnia (1992-95), novos dramas voltam a se desenrolar na península balcânica. O foco atual é Kosovo, província da República da Sérvia que, ao lado da República de Montenegro, constitui a Iugoslávia.
Essa Iugoslávia de duas repúblicas é, por sua vez, o fragmento restante da Federação Iugoslava socialista, que começou a se desintegrar em 1991, com as sucessivas separações da Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina e Macedônia. A guerra em Kosovo revela que a dinâmica desintegradora ainda não se concluiu. As suas ondas de choque ameaçam conflagrar os países vizinhos e reordenar todas as peças da geopolítica européia .
Os Bálcãs são um mosaico de povos, línguas e religiões. Nos limites territoriais da antiga Iugoslávia, esse mosaico apresentava-se em toda a sua complexidade.
Ali, seis grupos nacionais majoritários (eslovenos, sérvios, croatas, montenegrinos, muçulmanos e macedônios), conviviam com quase uma dezena de grupos etno-culturais minoritários. Nessa segunda categoria, encontram-se os albaneses étnicos de Kosovo.
Os povos da antiga Iugoslávia distinguiram-se de acordo com as linhas de duas grandes fraturas histórico-culturais. O Cisma do Oriente, em 1054, separou os cristãos ortodoxos (sérvios, montenegrinos e macedônios) dos católicos romanos (eslovenos e croatas). A invasão turco otomana, no final da Idade Média, difundiu a religião muçulmana entre os bósnios e os albaneses étnicos de Kosovo. A conturbada história política balcânica propiciou a ocorrência de movimentos migratórios, que resultaram na formação de numerosas minorias etno-culturais, como a dos sérvios na Bósnia e Croácia, dos croatas na Bósnia e dos albaneses na Sérvia, Macedônia e Montenegro .
Kosovo esteve sob domínio turco otomano por mais de cinco séculos, desde a derrota sérvia na batalha de Kosovo Polje, em 1389, até a Primeira Guerra Balcânica, em 1912, no curso conflitivo que precedeu e preparou a Primeira Guerra (1914-18). As sangrentas repressões dos turcos contra as rebeliões sérvias foram o estopim dos fluxos migratórios que geraram as minorias sérvias na Bósnia e na Croácia. Durante seu longo domínio, os turcos estimularam a ocupação das terras abandonadas pelos sérvios por povos que abraçavam o islamismo. Foi assim que albaneses étnicos, povo não-eslavo, tornaram-se, gradativamente, majoritários em Kosovo.
Com a derrota dos turcos na Primeira Guerra Balcânica, o Estado sérvio assumiu o controle sobre Kosovo. Depois da Primeira Guerra, a região tornou-se parte do Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, que se transformaria, em 1928, na república da Iugoslávia. Sob essas duas formas sucessivas, a Iugoslávia foi, nesse período, a materialização do sonho da “Grande Sérvia”.
A Segunda Guerra (1939-45) desmantelou o Estado iugoslavo. Os nacionalistas croatas aliaram-se à Alemanha nazista.
Parte da elite política albanesa de Kosovo associou-se aos croatas. Os nacionalistas sérvios organizaram-se num movimento monarquista que lutava pela restauração da “Grande Sérvia”. Os dois campos nacionalistas beligerantes foram, contudo, derrotados pelo movimento de resistência antinazista e republicano dirigido pelos comunistas.
A Resistência liderada por Josip Broz Tito - ele próprio, croata - foi o berço da Federação Iugoslava, que nasceu em 1944.
A Federação Iugoslava de Tito não era a herdeira da “Grande Sérvia”. O seu alicerce político era o princípio da igualdade de direitos dos grupos nacionais e da autonomia para as minorias etno-culturais. O seu alicerce institucional era o regime federal baseado nas seis repúblicas. No interior da República da Sérvia, foram estabelecidas as regiões autônomas da Vojvodina, onde uma minoria regional húngara convive com a maioria sérvia, e de Kosovo, até há pouco habitado por uma maioria regional de 90% de albaneses étnicos.
Fábrica da honra e do ódio
Mais de 500 anos de sangue unem a nação sérvia a Kosovo, seu berço espiritual. A derrota para o turco Murad I em Kosovo Polje (o “campo dos melros”, em servo-croata) assinalou o início da diáspora, encerrada apenas pela entrada triunfante das forças sérvias, após a Primeira Guerra Balcânica. Essa narrativa é o cerne da história mítica da nação sérvia. Ela contém os ingredientes poderosos da legitimidade romântica: honra e guerra, profanação e redenção, martírio e glória. Mas é uma “memória fabricada”, uma “tradição inventada”. O seu fundamento mítico consiste na proposição de uma nação sérvia que sempre existiu e atravessou séculos de provações antes de se constituir, finalmente, em Estado nacional.
O termo “nação”, na Idade Média, possuía sentido inteiramente diverso do atual. “Nação” era o conjunto de privilégios e liberdades de que desfrutavam linhagens da nobreza ou cidades autônomas. Em Kosovo Polje, era essa “nação” que estava em jogo: as prerrogativas dos nobres e dos monastérios sérvios. O nacionalismo, no século XIX, reconstruiu o termo “nação”, que passou a identificar um povo organizado em Estado e o exercício da soberania sobre um território delimitado por fronteira. Contudo, em busca da legitimidade, o nacionalismo borrou as distinções.
A narrativa mítica de Kosovo Polje foi a bandeira do pequeno Estado sérvio, quase um protetorado russo, que se engajava, contra o Império Turco-Otomano, na luta pela autonomia nacional.
Honra é uma noção medieval, há muito fora de moda. Mas as guerras são capazes de atualizá-la. A narrativa de Kosovo Polje fortaleceu-se durante as guerras balcânicas que consumaram a decadência turca, deflagraram a Primeira Guerra e originaram a “Grande Sérvia”. A “memória fabricada” forneceu os alicerces para a nação sérvia contemporânea, que emergiu apenas na segunda metade do século XIX. Em política, a eficácia é o critério da verdade. Pouco importa se Kosovo Polje foi uma batalha medieval destinada a definir qual linhagem da nobreza - se a sérvia e ortodoxa ou a turca e muçulmana - teria o privilégio de extrair tributos dos camponeses. Importa é que a tradição fabricada cimentou os pilares do Estado sérvio contemporâneo.A fábrica da honra manufatura também o ódio. Na Bósnia, entre 1992 e 1995, os “500 anos de sangue” serviram como combustível para os senhores da guerra, arquitetos da limpeza étnica. Em Kosovo, o martírio das bombas da Otan fertiliza uma vez mais a semente do ódio, da qual brotam colunas intermináveis de refugiados - “descendentes de Murad I”, segundo a narrativa pervertida. Há menos de três anos, as ruas de Belgrado e Novi Sad encheram-se de manifestantes que, sem medo da polícia de Slobodan Milosevic, pediam liberdade e democracia. Nos primeiros dias do bombardeio da Otan, os mesmos manifestantes voltaram às ruas, portando cartazes cheios de ironia contra Clinton. Um deles dizia: “Sem Kosovo, somos uma nação destituída de alma”.
A narrativa mítica de Kosovo Polje começou a ser escrita no século XIX, pelos nacionalistas que estabeleceram o Estado sérvio, contra o poder otomano. O seu texto tem as contribuições da elite sérvia da primeira Iugoslávia, dos monarquistas sérvios que combateram croatas e comunistas na Segunda Guerra e do neo-nacionalista Milosevic. Mas a Otan tem o duvidoso privilégio de escrever as linhas finais aquelas capazes de convencer as pessoas comuns, em Belgrado e Novi Sad, que a “memória fabricada” é a sua história.
Boletim Mundo Ano 7 n° 3
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