José Arnaldo Favaretto
Em artigo publicado em 1965, na conceituada revista científica britânica Lancet, o prêmio Nobel MacFarlane Burnet dizia “não existir qualquer processo aplicável com benefício para o homem que possa derivar das descobertas a respeito do código genético”. Previsão tão infeliz quanto a que foi feita por Ernest Rutherford, Nobel de Química , que um dia disse não haver nada a se esperar da divisão do átomo! Assim como a bomba atômica desmentiu Rutherford, o nascimento da biotecnologia catapultou a previsão de Burnet para um lugar de destaque no anedotário científico mundial.
A matéria-prima da biotecnologia são os genes, fragmentos do material genético constituídos principalmente por DNA (ácido desoxirribonucleico) que determinam a produção de proteínas específicas, controlando a arquitetura e o funcionamento dos organismos.
Na década de 1960, os biologistas moleculares puderam localizar e identificar os genes. O código genético foi elucidado e os cientistas aprenderam como a seqüência de bases nitrogenadas da molécula do DNA (A, T, C e G) determina a maneira pela qual os aminoácidos são encadeados na produção das proteínas.
O ano de 1973 marcou o que, para a biotecnologia, costuma ser chamado de “a nova conquista do fogo”: a técnica do DNA recombinante, base da engenharia genética. Os pesquisadores americanos Stanley Cohen e Herbert Boyer anunciaram ter introduzido fragmentos de material genético de uma espécie em células de outra espécie. Depois de dezenas de séculos fundindo e manipulando metais, podíamos manipular o material genético, a receita de ser e de viver dos seres vivos.
Um organismo transgênico ou, mais corretamente, organismo geneticamente modificado (GM) é aquele que contém gene de outra espécie inserido em seu material genético. Em menos de meia década, as plantas transgênicas de diversas espécies, como soja, milho, algodão, tomate, batata, canola e outras saltaram dos laboratórios para cerca de 40 milhões de hectares.
Dessa área, 74% estão localizados nos Estados Unidos. A Argentina e o Canadá vêm logo atrás, com 15% e 10%, respectivamente.
A soja transgênica (chamada “carinhosamente” pelo movimento ecológico Greenpeace de “Frankensoja”) ocupa 25 milhões de hectares e já representa mais de 70% da soja cultivada na Argentina e 54% nos Estados Unidos. O mercado mundial de produtos transgênicos deve atingir 20 bilhões de dólares em 2005.
As técnicas de manipulação genética têm desenvolvido, principalmente, variedades de plantas resistentes a herbicidas ou a insetos. A “Frankensoja”, comercialmente denominada Roundup Ready, desenvolvida pela americana Monsanto, segunda maior empresa mundial do setor, tolera o herbicida glifosato.
O mesmo princípio explica a potencial vantagem do arroz transgênico Liberty Link, produzido pela joint-venture alemã Hoescht-Schering-AgrEvo, que deverá ser colhido no Brasil a partir de 2002. Um dos maiores problemas da rizicultura é o arroz vermelho, uma praga de difícil controle por ser biologicamente muito semelhante ao arroz comum. Quando invade uma plantação, o arroz vermelho não pode ser combatido com herbicidas convencionais, que atacam também a variedade comercial do arroz. A AgrEvo desenvolveu uma variedade de arroz resistente ao herbicida Liberty, que pode ser aplicado à lavoura, matando apenas o arroz vermelho.
A variedade conhecida por milho Bt, desenvolvida em 1992 pela suíça Novartis, maior empresa de biotecnologia aplicada à agricultura do mundo, recebeu da bactéria Bacillus thuringiensis o gene que determina a produção de uma toxina que mata certas lagartas de inseto, mas não causa dano ao ser humano. Essa variedade de milho transgênico adquiriu a capacidade de produzir a toxina Bt, tornando-se resistente ao ataque da lagarta-do-cartucho e da broca, as principais pragas dessa lavoura.
Algumas variedades de plantas GM incorporam a chamada Terminator technology, que consiste na introdução, além do gene de efeito desejado, de outros que acarretam a morte dos embriões. Isso faz com que as sementes originem plantas estéreis.
Se um agricultor adquirir da Monsanto as sementes de soja Roundup Ready, após a colheita ele não poderá usar parte das sementes para plantar a próxima safra. Dessa forma, os agricultores tornam-se “reféns comerciais” da empresa, retornando ano após ano para adquirir mais sementes. A empresa defende a utilização da Terminator technology, alegando que ela protege seus elevados desembolsos em pesquisa e desenvolvimento.
Não devemos nos esquecer de que a soja Roundup Ready é resistente ao herbicida Roundup, ambos produzidos pela mesma empresa!
Em todo o mundo, ecologistas argumentam que são desconhecidos os impactos ambientais das plantas transgênicas a longo prazo. De acordo com Silvio Valle, coordenador do curso de bio segurança do Instituto Oswaldo Cruz, “na introdução de qualquer variedade geneticamente modificada no ambiente, existe a possibilidade de sua dispersão se tornar incontrolável, causando o aparecimento de novas pragas ou outros efeitos inesperados, como a melhora da palatabilidade do vegetal, que passa a atrair novos predadores”. Outro risco levantado por pesquisadores é a transferência genética horizontal, ou seja, o gene responsável pela resistência aos inseticidas ser transferido de uma espécie vegetal para outra, acarretando o aparecimento de “super pragas”. Essa transferência já ocorreu, tendo sido relatada a passagem, do trigo e da canola para ervas daninhas, de genes que conferem resistência a herbicidas.
As associações médicas de diversos países têm sugerido que o cultivo e o consumo de transgênicos sejam suspensos, até que os reais impactos sobre a saúde humana sejam mais bem esclarecidos. Nos Estados Unidos, apenas 1% dos gastos com pesquisas em biotecnologia destina-se às questões de bio segurança; na Alemanha, tradicionalmente refratária aos GM foods, essa parcela chega a 6%. E, provando mais uma vez que ciência e política estão longe do divórcio, após a vitória eleitoral da coalizão entre os social-democratas e os verdes os fundos alemães destinados a esse tipo de investigação aumentam mês a mês.
Os alimentos geneticamente modificados quase não têm encontrado resistência ao consumo em alguns países, como nos Estados Unidos; em outros, como na Inglaterra, os transgênicos são o novo “mal do século”. Entre os ingleses, 77% acham que as plantas geneticamente modificadas devem ser banidas do país, enquanto 61% afirmam que não as comeriam em nenhuma hipótese; na Noruega e na França, alguns GM foods já estão proibidos.
Com a posição contrária aos transgênicos em muitos países, empresários têm buscado fornecedores que se comprometam a não usar produtos geneticamente modificados. Há alguns meses, o governo do Rio Grande do Sul vem tentando converter o estado em “área livre de organismos geneticamente modificados”, uma proposta que, sob a bandeira ecológica, organiza uma estratégia econômica. Da mesma forma que, para a pecuária, é importante uma região ser declarada “área livre de febre aftosa”, argumenta-se que, dentro de pouco tempo, parte substancial do mercado dará preferência a produtos provenientes de regiões isentas de organismos GM.
Boletim Mundo Ano 7 n° 4
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