Raquel Moreira Leite
Foi um vasto roteiro pelos estados de Karnataka, Andra Pradesh e Tamil Nadu, todos no sul do país, geograficamente dominado pelo Planalto do Decã. Também foi o inverno mais quente de minha vida, em torno de 300C.
É muito fácil encontrar uma palavra para definir a Índia – multidão. O bilhão de habitantes não pode ser abstraído. Não existe lugar onde uma multidão de pessoas não esteja se comprimindo entre carros, carroças, “motor riquixá”, vacas sagradas, porcos, cachorros, carros de boi. Foi, em certo sentido, uma viagem de volta ao passado, pois a Índia mantém formas de produção, de organização social e econômica de, no mínimo, 50 anos atrás.
Ficamos hospedadas em casas de rotarianos. Mesmo nessas residências com banheiros modernos, conservam-se costumes tradicionais como o banho tomado com um balde e caneca. Quando há chuveiro, ele permanece sem uso. O motivo: “Economia de água”. Claro: as chuvas de monções concentram-se em quatro meses, no verão, enquanto a seca dura por todo o resto do ano. Meus anfitriões, um casal jovem com uma filha de seis anos, não pretendem ter outros filhos segundo eles, o exemplo de controle populacional tem que partir das castas superiores.
É notória a submissão da mulher ao homem. Uma vez, disseram-me que a mulher indiana gosta de servir seu marido. Em todas as casas nas quais fiquei hospedada, os casamentos foram arranjados pela família, por critérios de castas e condições econômicas. Mulheres com instrução universitária, em geral, trabalham apenas em casa. As universidades indianas, todas públicas, são exemplos de investimentos com baixos retornos. As famílias abastadas têm muitos empregados. Uma vez, nos explicaram: “eles nos servem 24 horas por dia”. Em geral, os empregados dormem no chão do corredor ou na cozinha, embrulhados em um cobertor.
A primeira aventura foi uma viagem de 14 horas num velho trem para Hyderabad. A teia de ferrovias rasga todo o país. Precários e inseguros, os trens são uma das principais heranças da colonização britânica. Alojados no sleeper wagon, apertados entre as bagagens e os dois bancos, começamos a pensar na noite de sono quando o guia nos mostrou que sobre nossas cabeças, num pequeno espaço, surgiriam seis camas. Dormimos engavetados. Antes, encaramos pela primeira vez a experiência de comer com as mãos, como sempre fazem os indianos. Mais tarde, deixamos de estranhar esse hábito.
Longe das imagens de cartão-postal
A partir de Hyderabad, seguindo pelas terríveis estradas da rodagem para o coração da Índia, começamos a sentir saudades da viagem de trem. Nas décadas do pós-guerra, quando os países subdesenvolvidos engajaram-se na “corrida para o desenvolvimento” baseada em empréstimos no exterior, a Índia seguiu outro caminho. O país não se endividou, mas hoje apresenta problemas seríssimos de infra-estrutura. Um deles são as estradas de rodagem.
Nesses pequenos caminhos, não pode haver pressa. Na ausência de postos de serviço, “fertilizamos” os campos indianos com nossas necessidades. Em alguns lugares, os agricultores jogam os cereais sobre o leito das estradas, para que os automóveis separem os grãos.
Nas longas horas sacolejando pelas estradas pode-se observar a organização de um espaço regional dominado por paisagens agrícolas e pela mineração. Os processos de plantio são rudimentares. A terra é preparada com arados de tração animal ou humana. Não vi tratores. A policultura tropical destina-se ao mercado interno.
Com exceção de Chennai e Bangalore visitei cidades de porte médio e pequeno, para os padrões indianos.
Todas caracterizam-se pela precária infra-estrutura urbana.
Poucas ruas são asfaltadas, não há calçadas e o tráfego é caótico. Os carros, ao som estridente das buzinas, abrem caminho entre os transeuntes e estacam quando encontram uma vaca impassível. Nas cidades menores, residências de classe média e favelas compartilham um espaço urbano pouco segregado. O esgoto corre a céu aberto, para delícia dos porcos que circulam sem cerimônia, livres de qualquer risco em virtude da proibição religiosa do consumo de sua carne entre hindus e muçulmanos.
A religião tornou vegetarianos mais de dois terços dos indianos. Segundo o proprietário de uma siderúrgica: “É a forma mais barata de alimentação”. A comida indiana, extremamente apimentada, é um caso à parte. Desde cedo, as crianças ingerem pimenta em grande quantidade.
O condimento tem ação bactericida e ajuda a controlar os efeitos do consumo das águas não tratadas do país.
As formas de organização da produção, arcaicas, assentam-se largamente sobre o trabalho manual, que aparece em todas as atividades: engenhos de açúcar, minas de ferro, metalúrgicas. O trabalho infantil está em toda parte.
Numa indústria de seda pura que visitei, uma menina de 12 anos, linda, vestida com um sari rosa, trabalhava durante horas agachada junto à água fervente. Sem luvas, as mãos nuas, separava o casulo da seda.
Um dia, convidaram-me para entregar um prêmio a habitantes de uma favela envolvida em um programa de alfabetização. Como boa brasileira, dei dois beijos na primeira das premiadas, que me fitou assustada. Depois, mulheres e crianças que não participavam do projeto formaram longa fila para que eu as beijasse. Um professor, mais tarde, explicou-me que aquelas pessoas nunca esqueceriam o grande acontecimento, pois fazem parte do grupo dos párias e não são, jamais, beijadas por pessoas de castas superiores, às quais presumivelmente eu deveria pertencer.
Boletim Mundo Ano 7 n° 5
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