terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

DE COBRAS E RATOS

Seria difícil imaginar uma tribuna mais eficiente para se denunciar os abusos cometidos contra os curdos. O principal líder separatista curdo, Abdullah Ocalan (pronuncia-se Oshalan), preso em fevereiro no Quênia com a cumplicidade dos serviços secretos da Turquia, Grécia, Estados Unidos, Israel e, possivelmente, da Síria, enfrentou julgamento público em território turco. A acusação: terrorismo. A pena, prevista de antemão: morte.
Terreno ideal para que Ocalan, chefe do Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK), denunciasse os morticínios que seu povo vem sofrendo nas mãos do Estado turco desde o início do século, certo? Ainda mais, levando-se em conta que Ocalan era reconhecido como o mais inflexível dos líderes curdos, certo? O mesmo Ocalan, o “apo” (titio), que um jornalista europeu definiu como tendo “a compaixão de uma cobra”, certo? Errado três vezes.
Ocalan, a cobra, pediu perdão, assumindo, na prática, a culpa pela morte de mais de 30 mil pessoas, em 15 anos de luta pela independência entre os curdos e o Estado turco. Caso o júri desistisse da pena de morte, a cobra metamorfoseada em rato prometia abrir mão da luta armada e jurar fidelidade à Turquia. Nada adiantou.
Ele foi mesmo condenado à pena de morte (se ela será cumprida, é outra história, porque a vida de Ocalan pode funcionar como uma excelente carta, em negociações para que os curdos deponham armas). Os curdos nunca estiveram tão longe de seu Estado independente. Seu destino, por muito tempo, é ser um joguete nas disputas entre os governos da região: Turquia, Irã, Iraque, Síria e Israel.
O “povo das montanhas” teve a sua chance de construir um Estado ao final da Primeira Guerra(1914-18), quando foi desmembrado o Império Otomano. Mas a rebelião nacionalista de Mustafá Kemal, que originou o atual Estado nacional turco, cortou o caminho para um Curdistão independente. Com a divisão do Império Otomano, os curdos viram-se repartidos entre os novos países criados na região. Isso reforçou a fragmentação da cultura curda e os laços tradicionais de lealdade dos curdos a chefões de tribos e clãs.
Ao longo deste século, cada governo do Oriente Médio vem tratando de cooptar a “sua” fatia da população curda, quando está em pé de guerra com países vizinhos.
Assim, em 1929, o xá (imperador) do Irã financiou uma rebelião dos curdos iraquianos contra o governo central daquele país. O mesmo ocorreu em 1974-75, durante a primeira guerra Irã-Iraque, pela posse de importantes áreas petrolíferas.
Os dois países acabaram chegando a um acordo. E os curdos iraquianos, que haviam apoiado o Irã, em busca, talvez, de seu Estado independente, foram entregues à vingança do governo do Iraque.
Após a revolução islâmica de 1979, no Irã, um dos principais clãs curdos  a família Barzani – passou a buscar apoio em Israel, que tinha interesse em desgastar o poder dos aiatolás xiitas. Os mesmos aiatolás que financiaram uma rebelião dos curdos iraquianos, durante a mais recente e sangrenta guerra Irã-Iraque (1980-1988). Em represália, o ditador iraquiano Saddam Hussein exterminou aldeias curdas inteiras, usando gases venenosos. Só na aldeia de Halabja, em 1987, foram cinco mil mortos, a maioria mulheres, crianças e idosos.
A derrota de Saddam Hussein na Guerra do Golfo, em 1991, foi vista por muitos curdos como a luz no fim do túnel na longa luta pela independência. De fato, os Estados Unidos, vencedores do conflito, incentivaram a formação de uma aliança entre os curdos do norte do Iraque, os xiitas do sul e a oposição moderada iraquiana, para derrubar Saddam. Essa coalizão pegou em armas, mas a Casa Branca não foi até o fim em sua promessa de enxotar o líder iraquiano. Uma das razões para o recuo foi a pressão da Turquia, integrante da Otan que desempenha função estratégica na área do Mediterrâneo oriental.
O Estado turco temia que os curdos iraquianos utilizassem sua presença em um governo pós-Saddam, para reforçar o movimento pela criação de um grande Curdistão.
Sadam Hussein recebeu nítidos sinais de que seria tolerado no poder pelos Estados Unidos. E interpretou isso como autorização encoberta para um novo massacre contra os curdos. Pior: o clã curdo da família Barzani aproveitou a deixa e aliou-se a Sadam na vingança, que vitimou milhares de seguidores do clã Talabani, patrocinado pelo Irã. Esses dois grupos chegaram a um acordo de paz em 1996, de forma que curdos iraquianos e iranianos suspenderam as hostilidades aos respectivos governos. A luta pela independência, então, ficou restrita ao Partido dos Trabalhadores Curdos, da Turquia (o PKK de Abdullah Ocalan), que se define como marxista-leninista, mas sempre foi patrocinado pela Síria.
Na Turquia, os curdos não são reconhecidos como etnia, seu idioma é proibido e a violência militar é constante. Graças ao combate inflexível pela independência – que incluía o terrorismo contra civis turcos e colaboracionistas curdos – o PKK ganhou enorme influência entre os mais de 1,5 milhão de curdos que vivem na Europa ocidental.
Só que os humores sírios voltaram-se contra Ocalan desde o ano passado, quando as atividades militares do PKK quase lançaram a poderosa Turquia a uma guerra contra a Síria. Essa é uma alternativa que não passa pela cabeça do presidente sírio Hafez Assad. O regime de Assad vem tentando há anos uma reaproximação com o Ocidente, meta que exige sólidos acordos de paz com turcos e israelenses.
O líder curdo, provavelmente “convidado” a se retirar da Síria, partiu em estranha viagem para a Itália, experimentou um exílio frustrado na Grécia e na Rússia e, finalmente, foi preso no Quênia. Não por acaso, as coisas entre a Síria e a Turquia agora estão calmas e o governo sírio embarca em um novo processo de paz com Israel.
É difícil saber o que se passava pela cabeça de Ocalan, quando ele deixou de lado 15 anos de luta, jurando humildemente lealdade ao Estado turco. Talvez fosse o medo humano de morrer. Ou, talvez, o reconhecimento do abandono e o isolamento o tenham convencido de que os curdos continuarão a ser, por muito tempo, o mais numeroso povo sem pátria.
A saga da “nação sem Estado”
Há cerca de 25 milhões de curdos, que habitam regiões de cinco países da Ásia ocidental: Turquia, Iraque, Irã, Síria e Armênia. Aproximadamente a metade deles vive em território turco.
A presença curda nas regiões montanhosas da alta Mesopotâmia é muito antiga. Os curdos foram, em sua maioria, convertidos ao islamismo sunita no século VII, mas há minorias xiitas e judaicas. Não existe uma língua curda comum, mas diversos dialetos. Os dois principais são o curmanji – utilizado na Turquia, Síria e no norte do Iraque e Irã – e o surani, falado no sul do Iraque e Irã. Nestes dois últimos países, a língua curda é escrita em caracteres árabes, enquanto na Turquia e na Síria, em caracteres latinos. Na Turquia, o uso público da língua curda continua a ser considerado crime.
O grande ponto comum entre os curdos é o fato de serem montanheses, vivendo o mais longe possível do poder central em cada país. A sua coesão social estrutura-se em torno das redes de lealdades tribais e clânicas. Entretanto, essa é também a sua fonte de fraqueza, sob o ponto de vista da política internacional.
O sonho de um Curdistão independente quase se materializou no encerramento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando da assinatura do Tratado de Sévres (1920), que previa a criação de um Estado curdo. Todavia, esse projeto foi abortado pela nova Turquia de Mustafá Kemal, que impôs a sua vontade no Tratado de Lausane (1923). Se o Curdistão viesse a se constituir em Estado, seria o único em todo o Oriente Médio a usufruir de abundância tanto de petróleo como de água. No Iraque curdo localizam-se importantes jazidas de petróleo, enquanto a Turquia curda abriga as nascentes dos rios Tigre e Eufrates.
Desde a desilusão de Lausane, movimentos nacionalistas curdos mantêm a bandeira de criação de um Estado. Essa meta esbarra na oposição dos países que possuem populações curdas, especialmente a Turquia, que combina a repressão sistemática a uma política de desfiguração da identidade cultural curda.
Boletim Mundo Ano 7 n° 4

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