Eduardo Campos
Descrever a Índia não é fácil. Não existe uniformidade.
Prevalecem os contrastes. A quantidade de pedintes na rua não ofusca a opulência dos antigos palácios dos marajás. Enquanto se realizam testes nucleares, funcionários dos correios continuam a colar selos com pasta de arroz caseira. Os picos gelados do Himalaia não estão tão distantes do calor e das areias do Deserto de Thar.
Viajei de cidade a cidade nos ônibus de fabricação indiana e em trens, alguns herdados do império britânico.
Os ônibus, muito sujos e com poltronas desconfortáveis, são conduzidos velozmente pelas precárias estradas embalados por ruidosa música indiana, enquanto o motorista se entretinha com a buzina ensurdecedora. Equipamento de muita importância na desordem do tráfego, funcionando como substituto do pisca-pisca nas ultrapassagens. No lugar do “Mantenha distância” normalmente exibido no Brasil, a traseira dos caminhões e ônibus indianos pede:
“Buzine por favor”.
Ainda assim, há vantagens dos ônibus em relação aos trens. Eles não ficam muito lotados e tanto partem como chegam nos horários previstos, coisa que raramente acontece com os trens, principalmente nos trajetos mais longos. As estações ferroviárias mais parecem lugares de penitência coletiva onde os indianos, na tentativa de melhorar seus karmas, se encontram.
SEM PACIÊNCIA, NADA FEITO
É preciso muita paciência para comprar um bilhete, descobrir a plataforma de embarque e esperar o trem (certa vez fiquei “plantado” na estação por mais de quinze horas!). Já acostumados, os indianos sempre trazem consigo um pedaço de pano que, estendido no meio da multidão, serve como “cama”. A maneira que o governo encontrou para amenizar o problema é inusitada: praticamente todas as estações mais importantes têm um hotel no andar superior.
Procurava conhecer as cidades a pé, mas raramente o fazia sozinho. Sempre tinha alguém à espreita que soltava um “Hello friend, how are you? Where do you come from?”, ou ainda “Give me rupi, please!” e me perseguia.
Os mais insistentes porém, são os condutores dos riquixás, os triciclos, motorizados ou a pedal, usados como táxi.
Algumas vezes é preferível alugar um desses, logo pela manhã, para se assegurar de que ninguém mais virá lhe incomodar, pois o condutor os afastará.
Por outro lado surgem outros inconvenientes: o condutor, para ganhar uma comissão, sempre tenta persuadi-lo de que determinado hotel ou restaurante está fechado e que ele poderia levá-lo noutro muito melhor e faz paradas não programadas nas típicas lojas de souvenirs que
vendem seda, tapetes, anéis de prata, pedras semi-preciosas, incenso, esculturas em mármore, mandalas...
Portugal conservou, por muito tempo, três enclaves coloniais em território indiano - Goa, Diu e Daman. Resolvi conhecer Diu, pequena ilha no mar de Oman que somente deixou o protetorado português em 1967. Hoje, apenas os mais idosos ainda falam a língua de Camões que por sinal morou em Goa. É notável a semelhança entre Diu e algumas cidades litorâneas brasileiras. Entre um mangue degradado, plantações de cana-de-açúcar e praias, o pequeno vilarejo, próximo a um forte, apresenta o mesmo padrão arquitetônico do período colonial brasileiro,
inclusive o crucifixo no alto da igreja abençoando a cidade, coisa rara por lá.
AS RUAS - DORMITÓRIO DE BOMBAIM (Hoje cidade de Mumbai)
Viajei de maio a julho, período pré-monções ao norte do subcontinente indiano. O calor, muito forte nesta época do ano, revela outros costumes. À noite, em Bombaim, milhares de pessoas dormem ao relento. Os taxistas transformam seus velhos carros em moradias. Os camelôs usam suas barracas também como camas. Outros, simplesmente, se deitam nas calçadas inacabadas. É claro que as altas temperaturas não são suficientes para justificar a transformação das ruas da maior cidade indiana em dormitórios, mas, graças a elas, infra-estruturas dispendiosas como as dos países frios não são necessárias.
Já em Varanasi, famílias inteiras fogem do calor abafado dos quartos estendendo panos sobre as lajes das casas. Ali passam a noite, sendo obrigados a acordar com o calor insuportável da aurora. Buscam o frescor, num ritual matinal, nas sagradas porém poluídas águas do rio Ganges, o mesmo em que são lançados os corpos cremados dos hindus. Nas ruas, os camelôs oferecem muito mais que legumes, frutas, roupas e bugigangas.
Uma vasta rede de serviços estende-se, literalmente, aos nossos pés - são dentistas, sapateiros, mecânicos, limpadores de ouvidos e alfaiates, sentados no chão e manipulando habilidosamente parcos e toscos instrumentos.
A sombra de uma árvore revela-se lugar ideal para o estabelecimento de oficinas, escritórios e até consultórios.
Deixei a Índia em agosto e a vontade de voltar aumenta a cada lembrança de tudo que, lá, inebria os sentidos e cativa os sentimentos .
TENSÃO RELIGIOSA DESAFIA DEMOCRACIA
A Índia, com seus mais de 900 milhões de habitantes, não é uma nação, mas uma civilização. O hindi, falado por 40% da população, convive com outras 17 línguas oficiais. Há mais de 3 mil dialetos locais. O inglês, idioma do colonizador, funciona como “língua franca”. A Babel de etnias expressa-se, no plano político, pelas reivindicações de autonomia regional e pela eclosão freqüente de movimentos que pedem a reformulação dos limites das unidades federadas.
Mas a civilização indiana é, também, um Estado e uma potência asiática. Nascida da divisão da União Indiana britânica, em 1947, a Índia contemporânea percorreu uma trajetória marcada por guerras de fronteira contra o Paquistão e a China. A rivalidade com Pequim a conduziu à cooperação técnica e militar com a antiga União Soviética e, ainda, a oferecer asilo ao Dalai-Lama tibetano.
O programa nuclear foi acelerado na década de 60, após os primeiros testes atômicos chineses e os choques de fronteira pelo controle da região da Cachemira, habitada majoritariamente por muçulmanos. Em 1974, a Índia explodiu a sua bomba, fomentando o desenvolvimento da capacidade nuclear do Paquistão. Em maio de 1998, cinco testes atômicos indianos provocam testes simétricos paquistaneses. Os rivais ingressam, oficialmente, no seleto clube das potências nuclearizadas.
O Estado indiano é a maior democracia parlamentar do mundo. Desde a independência, regularmente, a prática das eleições livres estabiliza o regime político. A democracia indiana assentou-se, historicamente, na hegemonia do Partido do Congresso, fundado em 1885 e dirigido pelo Mahatma Gandhi durante as campanhas de resistência pacífica contra o domínio britânico. Em 1996, degradado pela corrupção, o Partido do Congresso foi derrotado pelo Bharatiya Janata (BJP), partido nacionalista que defende o predomínio constitucional da religião hinduísta.
A divisão religiosa é o enigma que ameaça a democracia indiana. Os cerca de 82% de hinduístas convivem com a numerosa minoria muçulmana - 12% da população, o que significa mais de 100 milhões de pessoas.
O poder do BJP testa os limites da convivência religiosa interna, acirra os ânimos na conflagrada região fronteiriça da Cachemira e repõe o problema crucial das relações com o Paquistão muçulmano.
Boletim Mundo Ano 7 n° 3
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