sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Bandos armados assolam territórios sem Estado

Na África, Ásia e Bálcãs, a falência das instituições ou o colapso do poder central geram guerras sem fim, cobrando tributo em mortos e refugiados
Quem é o presidente do Brasil?
Qualquer cidadão brasileiro tem o dever de saber a resposta, sem qualquer dúvida ou ambigüidade. Mesmo aqueles que se situam politicamente no campo da oposição ao governo federal serão obrigados a admitir que o presidente é Fernando Henrique Cardoso, pelo menos até a realização de novas eleições. Isso tudo pode parecer óbvio, algo como “chover no molhado”. Mas não é. Ao contrário, em muitos países, atualmente, se você perguntar quem é o chefe de Estado, corre o risco de não receber resposta alguma, ou várias respostas diferentes.
É o caso, da Somália, no Chifre da África. Formalmente, o país é uma república, com governo central sediado em Mogadíscio, a capital. Na prática, o poder é disputado por vários grupos envolvidos em feroz guerra civil desde janeiro de 1991, quando caiu o regime de Siyad Barré. Logo após a queda de Barré, Ali Mahdi Mohamed anunciou que controlava o sul do país, auto proclamando-se chefe de Estado. Passou a enfrentar a oposição armada de Mohamad Farah Aidid, que em pouco tempo assumiu o controle de grande parte da capital e da região sul. Ao norte, também em 1991, Abderrahman Ahmed Ali proclamou a independência da “Somalilândia”, sendo substituído no governo, em maio de 1993, por Mohamed Ibrahim Egal, ex primeiro ministro de Barré. Uma conferência de paz patrocinada pelas Nações Unidas, em Adis Abeba, a capital da Etiópia, em março de 1993, registrou a presença de nada menos que 14 facções em luta.
Tudo isso, é claro, cobrou um altíssimo custo em vidas humanas, além de expulsar centenas de milhares de pessoas de suas casas e regiões, forçando-as a viver em miseráveis campos de refugiados nos países vizinhos (Etiópia, Quênia e Sudão). Essa situação forneceu aos Estados Unidos o pretexto para invadir o país, sob o patrocínio formal da ONU, em dezembro de 1992, com o objetivo declarado de “restabelecer a ordem”. Mas, nos meses seguintes, soldados americanos perderam a vida em combate com as tropas de Aidid, fazendo com que o presidente Bill Clinton retirasse suas forças da Somália. Apesar de várias tentativas de acordo, o edifício político-institucional jamais foi restabelecido.
Em outros contextos, vários países africanos passam por situações semelhantes, ainda que talvez não tão extremas.
São freqüentes os casos em que facções em luta assinam acordos de paz, reconhecendo a existência de um governo central apenas para retomar os combates alguns meses depois. Na Libéria, país da África ocidental, a paz assinada em julho de 1993 parecia ter lançado as bases para um acordo entre as três maiores facções em luta pelo poder (o governo interino de Amos Sawyer, a Frente Nacional Patriótica, de Charles Taylor, e o Movimento de Libertação Unido pela Democracia).
Na prática, houve apenas um momento em abril de 1996, situação que forçou a assinatura de novos acordos, em agosto daquele ano.
Mas a África é uma exceção no cenário mundial. A fragilidade de boa parte dos regimes africanos é uma decorrência direta da história do continente.
As fronteiras de seus atuais Estados foram traçadas arbitrariamente, na Conferência de Berlim de 1885, pelas potências coloniais da época. Tribos inimigas foram obrigadas a conviver dentro de um mesmo Estado, ao passo que nações foram artificialmente separadas por fronteiras que apenas refletiam os interesses das potências européias. Para piorar o problema, a colonização dos países africanos seria encerrada apenas em meados dos anos 70, com a Revolução dos Cravos em Portugal. Os novos países da era pós-colonial, formalmente livres e soberanos, passaram a ser comandados, em geral, por ditaduras militares que, no contexto da Guerra Fria, eram joguetes e compradores de armas das superpotências.
Nessas condições, extremamente agravadas pela miséria econômica generalizada, boa parte dos Estados africanos é muito mais uma ficção mantida pela força das armas do que expressão de uma realidade político-institucional consolidada Claro que há exceções importantes, como a África do Sul pós-apartheid, Egito, Tunísia, Líbia. Mesmo estes países, relativamente estáveis, não estão a salvo de eventuais e sérias explosões sociais e religiosas. O Egito, por exemplo, enfrenta movimentos fundamentalistas islâmicos de mesma natureza que os verificados na Argélia.
 E mesmo a “próspera” África do Sul ainda tem um longo caminho a percorrer até superar de vez as marcas da segregação, acomodar a oposição zulu e neutralizar o movimento neonazista branco.
Se a fragmentação do Estado aparece com força na África, o fenômeno também se manifesta, em menor escala, na Europa e na Ásia. É exemplar, nesse sentido, o caso da decomposição da antiga Iugoslávia, ao mesmo tempo acelerada pela guerra civil na Bósnia e fator de sua ampliação. A dissolução dos regimes socialistas autoritários, após a queda do Muro de Berlim, a 9 de novembro de 1989, permitiu a eclosão de forças étnicas, religiosas e nacionalistas que desafiam qualquer noção de poder central. O Acordo de Dayton para a paz na Bósnia, assinado no final de 1995, só se mantém às custas da presença permanente de tropas da ONU. Outros países do antigo bloco socialista, como a Albânia e a Romênia, cujas ditaduras eram particularmente violentas, são regidos por governos que se apóiam em um equilíbrio político muito precário, freqüentemente sacudido por manifestações da oposição que, invariavelmente, denuncia práticas de autoritarismo e corrupção.
Na Ásia, a ação de grupos fundamentalistas islâmicos desafia a própria noção de um poder político central, tal como definido nos tradicionais moldes democráticos ocidentais. Essa questão adquire potenciais francamente explosivos nas antigas repúblicas muçulmanas soviéticas da Ásia Central, onde o fundamentalismo foi fortemente estimulado pela revolução xiita no vizinho Irã, em 1979. Talvez o país que mostre mais claramente esse potencial seja o Tadjiquistão, onde os fundamentalistas têm profunda influência. Já no Afeganistão, grupos muçulmanos lutam entre si desde que Moscou encerrou dez anos de ocupação do país, em 1989. Na Ásia do Pacífico, é o Cambodja que enfrenta as maiores dificuldades para consolidar um governo central. Tarefa quase impossível, após uma sangrenta guerra civil que opôs o príncipe Norodom Sihanouk (hoje representado pelo filho Rannaridh), a guerrilha do Khmer Vermelho (liderador por Pol Pot) e grupos armados pela China e Vietnã.
A fragmentação do poder centralizado de Estado, ou a impossibilidade de sua consolidação, adquirem um contorno dramático neste final de século, por se combinar com o processo de globalização.
Se a existência de economias nacionais fortes e fronteiras consolidadas é uma premissa necessária para a inserção de um Estado na economia global, então a precariedade desses “Estados” em crise coloca novas indagações sobre seu destino no cenário internacional. Até que ponto eles serão capazes de ingressar no mundo globalizado ? Mas a questão inversa também é verdadeira: a tendência à fragmentação poderá desafiar a globalização ? Não tenha pressa para responder.
Pense, antes, que muitas vezes na história problemas “locais” conduziram a catástrofes de grandes proporções. Afinal, a Primeira Guerra Mundial começou na pequena Sarajevo, na Bósnia.
Boletim Mundo Ano 6 n° 1

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