Cristina Carletti
Houve época em que unificações eram feitas a bordoada. Assim, por exemplo, em 1283 o rei Eduardo I, da Inglaterra, conquistou a Snowdonia, acabando de vez com a autonomia dos príncipes galeses. E para não dar sopa ao azar, mandou construir em Conwy, no extremo noroeste do País de Gales, um castelo que por pouco não arruína as finanças do Reino (quase) Unido. Foram nove anos em que se empregou a força de 1,5 mil operários e artesãos, para um resultado arquitetônico fabuloso. O castelo, as muralhas abrigando o povoado, está tudo lá, eu vi de perto neste último fevereiro morninho, provável efeito do El Niño no inverno britânico. O fato é que, transcorridas quatro décadas, já não se via utilidade no dispendioso castelo e ele foi praticamente abandonado. Escapou da demolição na fúria ferroviária vitoriana e hoje é um dos orgulhos turísticos de “Cymru”, que é como os galeses chamam seu país.
Assim também em Chester, cidadezinha inglesa próxima a Conwy. Cheia de casinhas medievais e turistas, e rodeada de muros. Os romanos chegaram lá uns 1.600 anos a.S. (antes de Shakespeare), atrás dos boatos sobre ouro e prata. Confirmados os boatos, foi Cláudio, o imperador, quem implantou a colonização romana ali, erguendo as muralhas e esticando os limites do famoso império. Quatro séculos depois, Roma teve que cuidar de si mesma e abandonou por lá seus esfalfados legionários. Mas pelo menos as muralhas ainda iriam servir para que, do alto delas, o rei Charles I aguardasse Cromwell, o César inglês, que em 1645 saiu de Londres especialmente para tirá-lo dali a tapa (na verdade, forçou a mão e arrancou-lhe a cabeça) e aniquilar os últimos aristocratas teimosos, encerrando assim a guerra civil conhecida como Revolução Puritana.
Mas o que eu quero dizer com tudo isso é que, hoje, é muito feio usar a borduna em nome de planos de hegemonia. Por essa razão, há anos os ingleses resistem à idéia de completa adesão à União Européia e, em vez de mandar empalar a rainha, os outros 14 países escolhem um britânico para a presidência rotativa da UE. Assim, investidos de importância supranacional, quem sabe os ingleses parem de anunciar que o continente está ilhado toda vez que baixa neblina no Canal da Mancha. De volta a Londres, depois do meu idílico turisminho histórico, voltam a TV, os jornais, as notícias. A obsessão do momento é a unificação européia, tema que ofusca até o efeito das bombas em Belfast.
Os ingleses surpreendem a gente: não discutem se as taxas de juro sobem e o crescimento vira decréscimo para acompanhar o câmbio da moeda única - que já se chamou ECU, mas como soava a deboche em mais de uma língua, passou a atender por euro. Discute-se o Cálice Sagrado, o pint, essa medida utilíssima, pois é por ela que se compra cerveja. Você entra num bar e pede um pint de cerveja, ou meio pint se você for frágil. Um pint equivale a quase meio litro. Já é difícil lembrar o próprio nome a partir do segundo pint, imagine se eles vão lembrar outra forma de pedir mais um pint.
Mas é chato usar esse argumento. Entretanto, o leite também é vendido assim, e não é possível forçar os britânicos a comprar leite por litro de uma manhã para outra. Pois então a Inglaterra conseguiu postergar a unificação dos pesos e medidas na Comunidade Européia em nome dos seus mamíferos. Por outro lado, a linha-dura em códigos de trânsito é deles e os outros países-membros querem amolecer para igualá-la aos demais. Como os ingleses esfregam na cara de todo mundo que eles têm o menor índice de mortalidade no trânsito, pode bem ser que a gente ainda vá ver a Europa toda trafegar pelo lado contrário.
Ilha na cabeça
“Nós somos feitos da mesma matéria que os sonhos” - a frase de A tempestade, de Shakespeare, talvez sintetize o orgulho inglês, o senso de singularidade nacional que alimentou tanto a resistência isolada à Alemanha nazista, no início da Segunda Guerra Mundial, quanto o desdém mal disfarçado com que a ilha encara o continente. A tempestade, de novo:
“Essa feliz estirpe de homens, esse pequeno mundo, esse rochedo precioso ancorado no mar de prata”.
“Rochedo ancorado no mar de prata” - a condição geográfica insular moldou a identidade nacional inglesa e a sua visão de mundo. Durante a tensa vigília que precedeu o desembarque aliado na Normandia, no Dia D, em 1944, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill alertou ao francês Charles De Gaulle: “Você pode ter certeza, general, que se algum dia formos obrigados a escolher entre a Europa e o mar aberto, é o mar aberto que escolheremos”.
Há meio século, a Grã-Bretanha evita a escolha radical, mas as palavras de Churchill não foram, jamais, renegadas.
Durante a Guerra Fria, os britânicos perfilaram, sempre, junto aos Estados Unidos, estabelecendo uma relação especial entre os “povos de língua inglesa”, na expressão de Churchill. Atrasados, e um pouco contrariados, ingressaram no projeto de unificação européia. Mas a Europa nunca se tornou seu verdadeiro lar.
Anthony Eden, primeiro-ministro nos anos 50, emoldurava a política externa britânica em três esferas, uma das quais abrangia o Atlântico, a outra, a Europa e a terceira, a Comunidade Britânica. Londres funcionava, nesse esquema, como o elemento comum e central às três. Tony Blair talvez seja o mais pró-europeu dos líderes britânicos do pós-guerra. Mas ele também tem uma ilha na cabeça.
Boletim Mundo Ano 6 n° 3
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