quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

MUDAR, PARA NÃO MUDAR

Um novo capítulo na história da seca nordestina foi aberto em 1909, com a criação do Instituto Federal de Obras Contra as Secas (Ifocs), depois transformado em Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs). Sua prioridade sempre foi construir açudes e barragens, capazes de armazenar a água das chuvas, para os tempos de secas.
À época, as oligarquias nordestinas já haviam perdido a importância econômica de que gozaram, até as primeiras décadas do século XIX. A hegemonia da República era disputada entre a nova burguesia financeira e exportadora de café do Sudeste, e os militares positivistas, hostis às oligarquias e defensores de um Estado centralizado.
As duas facções, porém, necessitavam de algum apoio no Nordeste e esse poder de barganha fez com que açudes e poços  obras públicas  fossem construídos em terras de particulares.
Serviam não para amenizar os efeitos da seca junto à população mais pobre e sim para manter vivo o gado dos coronéis.
No fim dos anos 50, quando os últimos governos pré-golpe militar (1964) acreditavam que um Estado forte poderia consolidar burguesias regionais integradas a um projeto nacionalista de desenvolvimento, foi criada a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). O tempo comprovou, no entanto, que eram outros os planos dos “coronéis” do Sertão.
Eles abriam mão, alegremente, de “projetos nacionais”, contentando-se com a posição de segundo ou terceiro violino de qualquer governo  democrático ou militar. Em troca, queriam a manutenção de seus privilégios e postos de destaque no aparelho estatal, o que significava acesso a verbas, inclusive a “recursos contra a seca”.
A Sudene funcionou, então, muito mais como um instrumento de conservação do controle político dos velhos grupos dominantes do interior ainda que associados de forma cada vez mais minoritária às facções hegemônicas - dos setores industrial e financeiro - do Centro-Sul. Em meio século de vida, o Dnocs propiciou a irrigação de apenas cinco mil hectares de terras nordestinas, sempre em áreas de latifúndio.
A oligarquia, aliás, sempre ganhou três vezes com a seca. Ao controlar o recebimento e a distribuição, para seus apasiguados, dos recursos federais; ao garantir que as “frentes de emergência” - fonte estatal de trabalho para quem perdeu tudo - fossem reservadas a seus eleitores e ao vender, a bom preço, mantimentos para essas mesmas “frentes”.
Graças ao “é dando que se recebe” e aos votos preciosos que controlam no Congresso Nacional, os herdeiros vêm revelando incrível longevidade, além de obter barganhas fantásticas.
Ao garantirem o apoio a Collor de Mello, negociaram a isenção do pagamento do ICMS sobre a cana e o açúcar, o que quebrou os cofres do estado de Alagoas. No Piauí, o clã Portela Nunes/Gayoso Almentra/Freitas-Rego domina o cenário político há quatro décadas. Desde 1951, a turma elegeu oito governadores, três vices e dois prefeitos da capital. No ano passado, 62% da receita do Estado era produto de transferências do governo federal, na base do “é dando (apoio político) que se recebe (dinheiro)”.
Isso explica, também, a atual deformação na representação popular no Congresso Nacional. Com 29% da população brasileira, o Nordeste comanda 31% da Câmara dos Deputados (o Norte, com 4,94% da população, tem 10,1% das bancadas). Já o Sudeste, com 42,5% da população, tem 34,7% da Câmara. Levantamento feito pela revista Veja indica que os 151 deputados nordestinos (boa parte dos quais provêm de áreas do Sertão) reservaram apenas 10% de seus pedidos de verbas para programas de combate à seca. Apesar de saberem que, desde o fim do ano passado, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) se esgoelava, alertando para a aproximação da seca terrível que hoje abate o Nordeste.
A longa história da seca no Brasil deverá ganhar um novo capítulo nos próximos anos. O presidente Fernando Henrique Cardoso prometeu, caso seja reeleito em outubro, tornar realidade um velho sonho: o desvio de 70 m3/ segundo, ou 3% do volume das águas do rio São Francisco, a um custo superior a US$ 1 bilhão. As águas iriam preencher 2.100 quilômetros de leitos de rios que estorricam durante a seca, nos estados do Ceará, Bahia, Paraíba e Rio Grande do Norte. Lula, candidato de uma frente de oposições, defende a obra da transposição e critica o governo pela demora em realizá-la.
Quem irá se beneficiar disso ?
O conjunto da região ou os “industriais da seca” de sempre ? Mistério. Só uma dica: o governo já encomendou um novo estudo sobre o desvio das águas do rio São Francisco, que deverá custar R$ 15 milhões. A decisão representou a rejeição de um projeto semelhante, elaborado no governo de Itamar Franco. O motivo da rejeição ? O projeto era de autoria do potiguar Abelírio Rocha, homem de confiança do ex ministro Aluísio Alves, de família tradicional, também potiguar. Rocha é acusado de beneficiar seu Rio Grande do Norte (e as bases políticas de Aluísio Alves), quando chefiava o setor de combate à seca, em Brasília. Coincidência ou não, as terras irrigadas do Rio Grande do Norte são hoje responsáveis por 85% da produção brasileira de melão e 30% da produção de manga.
Água, que te quero água. Seca, que te quero seca.
Boletim Mundo Ano 6 n° 4

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