Ladislau Dowbor
Não é perto. Do Brasil você viaja até Johannesburgo, na África do Sul, daí mais um dia de vôo até Bangcoc, na remota Tailândia, em seguida até Hong Kong e, finalmente, Pequim. O avião seguinte envereda pelo interior da China, ultrapassa a Grande Muralha e, algumas horas depois, aparecem as imensas planícies do deserto de Gobi, um horizonte perfeito de ar limpo como já não conhecemos no Ocidente, as vastas estepes semeadas de iurtas, as milenares tendas da Mongólia.
As imagens que nos vêm à mente são as inevitáveis lembranças de Genghis Khan, dos temíveis cavaleiros que conquistaram um dos maiores impérios que o mundo já conheceu. E, à medida que o avião desce, que aparecem mais nítidos os rebanhos de ovelhas, as manadas de cavalos, os vales de rios largos e rasos, vem a impressão de um passado que pouco mudou, logo confirmada pelos antigos templos que sobressaem na velha capital, Ulan Bator.
Como é que sobreviveu este espaço limpo, esta imensidão de campos sem cercas nem placas de propriedade, perdido entre as estepes sem fim da Sibéria, ao norte, e os desertos estéreis do oeste da China ?
Como é que sobreviveu intacta uma nação de pouco mais de 2,5 milhões de habitantes, com a sua língua, sua cultura, seus costumes hoje únicos no mundo, incrustada entre duas potências de tanto peso militar, econômico e cultural como a Rússia e a China ?
Estamos em julho, em pleno verão neste hemisfério.
O sol brilha alto mas a lufada de calor que se espera, instintivamente, na porta do avião, não surge. Um vento fresco sopra regularmente do norte, varrendo o descampado que cerca o aeroporto.
Não sei se são as 30 horas de vôo que me separam do Brasil, ou se estranha é a própria terra, mas é evidente que há algo de diferente. Em alguns momentos, surge o óbvio: a visibilidade, neste ar cristalino, torna-se artificial, de tão profunda, mostrando com total nitidez distantes montanhas no horizonte, a estrada que serpenteia nas colinas.
Recebem-me duas moças que têm tudo o que se espera da oriental, desde o imenso sorriso até os cabelos negros e retos, a gentileza cheia de respeito.
São do Ministério de Finanças, com quem deverei trabalhar algumas semanas. A Mongólia tem um governo recentemente eleito e quer descentralizar o seu sistema de gestão, numa visão de abertura do país, de mecanismos de mercado. Invade-me o sentimento de surrealismo: até aqui chegou o formulário ocidental, a simplificação que transforma os ideais humanos numa receita polivalente. Como será o casamento deste fim de mundo e das suas tradições com os sistemas especulativos do cassino financeiro global ?
Ulan Bator reflete todo este surrealismo. Antes das simplificações do Ocidente, a capital fora sujeita às simplificações soviéticas. As imensas praças do centro ostentam gigantescos edifícios, réplicas maciças dos edifícios burocráticos russos, um estilo pesado e cinzento que contrasta com a lindíssima arquitetura dos templos tradicionais, com as suas cores rebuscadas e formas delicadas. Logo em seguida, aparecem os novos edifícios que simbolizam a entrada da Mongólia nos tempos modernos: as imensas construções das redes hoteleiras ocidentais, torres de dezenas de andares, tão esmagadoras, em outro estilo, como os edifícios burocráticos. Vem-me uma idéia cristalina: a arrogância do comunismo russo e a do capitalismo americano são idênticas, cada um quer assinalar o país com a sua marca definitiva, nenhum pensou em se adaptar às tradições, respeitar a cultura ou, pelo menos, inserir-se na estonteante beleza natural do país.
Dentro dos hotéis, os ruidosos gafanhotos multinacionais, com o seu cabelo bem cortado, suas pastas pretas de executivos, buscando os lucros desta nova fronteira: a Mongólia é rica em ouro, tungstênio, zinco, molibdênio, prata, além das valiosas madeiras.
Aos governantes locais, cada vez mais perplexos com o ritmo dos acontecimentos e com a invasão das empresas, explicam que a liberdade de comercializar os seus produtos significa que o país é livre - logo, democrático e moderno. Os americanos negociam o ouro, os coreanos instalam modernos sistemas de telecomunicações, os japoneses apresentam carros luxuosos. O grosso da população, vivendo em apartamentos modestos de outra era, ou nas iurtas que cercam a cidade, funcionam como espectadores de um espetáculo onde não estão previstos, sequer como figurantes.
Um jipe russo nos leva para o sul, para uma província relativamente pobre, nos limites do deserto de Gobi. São sete horas de viagem, pelo campo, pois a estrada nem é necessária. Nas estepes onduladas cruzamos com a realidade da imensa maioria da população, a pecuária nômade. A cada vinte ou trinta quilômetros, aparecem pontos brancos, duas ou três iurtas, no meio da imensidão, com os seus rebanhos, suas roupas coloridas, algumas famílias. Entramos numa iurta, convidados para tomar a bebida nacional: leite, que pode ser de vaca, de égua, de ovelha.
É um choque - a estrutura redonda branca e um pouco suja, que vemos do exterior, cede a um interior recheado de tapetes, cofres, lindas madeiras.
As pessoas não param de falar, e morrem de rir das histórias que contam. Na terra dos mongóis, pensei, não existe a cara bestificada de quem passa o dia mastigando salgadinho frente à televisão. Claramente, o esporte favorito do mongol é curtir as relações com os outros.
Duas semanas é muito pouco. No entanto, um ano depois, no meu apartamento no centro de São Paulo, entre o barulho da televisão e o ronco dos carros e caminhões da rua, basta levantar os olhos para olhar, na fotografia que tenho na parede, uma visão de espaço, de natureza, que me traz algo que não sei definir, mas que sei que faz parte de um grande desejo.
Boletim Mundo Ano 6 n° 2
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