Homens caminham na Lua”. Com essa manchete, o The New York Times registrou o feito dos astronautas Neil Armstrong e Edwin Aldrin que, há 30 anos, em 20 de julho de 1969, tornavam-se os primeiros seres humanos a pisar em outro mundo. O passeio lunar pioneiro pode ser historicamente interpretado sob dois ângulos distintos. Significou a vitória dos Estados Unidos na “corrida espacial”, que foi uma dimensão da competição de prestígio associada à Guerra Fria. Reagindo à humilhação representada pelo lançamento soviético do primeiro vôo orbital tripulado – de Yuri Gagárin, a 12 de abril de 1961 – o presidente John Kennedy tinha anunciado o Projeto Apolo, cuja meta consistia em colocar um americano na Lua em dez anos.
O Times optou por destacar a outra interpretação do evento. O passeio dos astronautas era a culminância de uma trajetória milenar de descoberta do mundo. Pela televisão, uma audiência recorde reconhecia em Armstrong e Aldrin seus semelhantes, na estranha condição de visitantes em um mundo diferente. Reflexivamente, a humanidade lançava um novo olhar para a Terra e, do exterior, construía uma nova imagem do seu próprio lugar no universo.
O mundo de Ptolomeu
Entre os séculos VI e IV a.C. os filósofos gregos Pitágoras e Aristóteles desenvolveram a noção da esfericidade da Terra, que foi o alicerce para a cartografia clássica. Dicearco (350-290 a.C.) traçou uma linha eqüidistante dos pólos norte e sul, o Equador, dividindo a Terra em hemisférios e prenunciando o sistema de coordenadas geográficas. A cartografia clássica atingiu seu zênite com Cláudio Ptolomeu (circa 90-168), que passou a maior parte da sua vida trabalhando no museu de Alexandria e consultando as obras dos sábios antigos na célebre biblioteca da cidade. A sua Geografia, em oito volumes, descrevia e cartografava as “três partes do mundo” – a Europa, a África e a Ásia. O mapa-múndi do último volume mostrava o Oceano Índico como vasto mar interior, limitado a leste por uma comprida península asiática e ao sul pela “Terra Australis incognita”.
A obra de Ptolomeu permaneceu desconhecida durante quase toda a Idade Média, até a primeira tradução para o latim, em 1406. A cartografia medieval européia, desde Isidoro de Sevilha (cerca 560-636), sintetizou a imagem religiosa do mundo nos mapas circulares, de tipo TO.
A letra O simboliza um anel, no qual se inscreve o T, representando a subdivisão esquematizada dos três continentes. A concepção da Terra retrocedia, com a noção da esfera sendo substituída pela do disco.
O renascimento ptolomaico coincidiu com as Navegações européias. As viagens de Bartolomeu Dias e Vasco da Gama revelaram a configuração da África e a interligação dos oceanos Atlântico e Índico. As viagens de Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio e Fernão de Magalhães revelaram a existência da América e do Oceano Pacífico, desconstruindo a imagem clássica das “três partes do mundo”.
O planisfério anônimo produzido em Portugal e contrabandeado para a Itália por Cantino, agente secreto do duque de Ferrara, foi o primeiro a mostrar, em 1502, a “quarta parte do mundo”, batizada América no mapa-múndi do alemão Martin Waldseemuller, de 1507. Não era, apenas, uma revolução na cartografia. O espírito dos europeus tinha que se moldar a uma nova consciência do planeta e de seu próprio lugar no mundo.
Quarta Pars Orbis
As Navegações representaram uma revolução maior que o passeio lunar. Antes, a imagem confortadora das “três partes do mundo” assegurava a centralidade européia que, nos tempos medievais, confundiu-se com uma ordem divina estruturada em torno de Jerusalém. Depois, a vastidão do planeta, tão evidente na comparação entre o Novo Mundo e a Europa, obrigou as mentes européias a se reposicionarem. Até certo ponto, a projeção cartográfica de Mercator – que valoriza a posição e amplia ilusoriamente a dimensão da Europa funcionou como instrumento para essa readaptação.
A era dos descobrimentos prosseguiu nos séculos seguintes. A “Terra austral foi imaginada pelos antigos por razões lógicas: se o planeta era esférico, deveria existir um contrapeso capaz de compensar a massa continental do hemisfério norte. Entre os séculos XVI e XVII, a opinião sobre a sua existência oscilou sem cessar.
Na segunda metade do século XVIII, enfim, as viagens do inglês James Cook provaram que as pouco conhecidas terras do Pacífico sul eram a Austrália e a Nova Zelândia. O quinto continente foi cartografado e a crença na existência de terras austrais entrou em retrocesso.
Os mistérios polares só foram desvendados nos primeiros anos do nosso século.
O Ártico foi cenário da disputa pessoal entre os exploradores americanos Robert Peary e Frederick Cook, em 1908-09. Ambos constataram que ali não existe um continente, mas apenas uma depressão marítima congelada. Peary ficou com a glória da conquista do Pólo Norte, mas medições posteriores indicam que nenhum deles teria atingido exatamente o pólo.
A primeira travessia confirmada do Círculo Polar Antártico foi realizada por James Cook, em 1773. No século XIX, baleeiros aproximaram-se do cinturão da banquisa antártica, mas nada disso podia resolver a dúvida sobre a existência de um continente sob o gelo. Entre 1911 e 1912, aconteceu a primeira disputa internacional pela conquista de um continente, envolvendo o norueguês Roald Amundsen e o inglês Robert Falcon Scott. A vitória de Amundsen e o destino de Scott, relatado em seu diário até o trágico desenlace, formam uma das mais emocionantes narrativas da era dos descobrimentos.
No século XX, a exploração científica da Terra contou com o auxílio de técnicas sofisticadas de investigação das terras emersas, do fundo dos mares e das altas camadas atmosféricas. Foram produzidas imagens detalhadas desses domínios, que ampliaram os conhecimentos e as dúvidas.
Apenas o interior do planeta permanece inacessível à investigação direta.
Com Gagarin, a humanidade ultrapassou a fronteira do planeta. O cosmonauta viu a Terra inteira, que até então só podia ser observada sob a forma de representação. A sua exclamação “A Terra é azul” tornou-se um lugar comum.
Essa nova consciência da totalidade do planeta tornou-se um patrimônio da atual geração. O debate ambiental, que foi deflagrado nas décadas de 1960 e 1970 e ganhou enorme repercussão social, constitui provavelmente o fruto mais duradouro da aventura espacial.
QUO VADIS?
O passeio de Neil Armstrong encerrou uma fase da história. A Lua, fonte inspiradora de poetas e bruxos, era até aquele momento um corpo celeste inatingível, a face mais visível de um universo extraterreno para sempre vedado ao contato humano. Era o ícone híbrido e ambíguo, a um só tempo familiar (a Lua de todas as noites, dos encontros e rupturas) e desconhecido (o que há nela e além dela?) - os componentes hipnóticos de tudo que ao homem se apresenta como desafio e sedução. Não por acaso, ela foi o tema de um dos grandes sucessos de Júlio Verne, ‘‘Da Terra à Lua’’ (1866), que inspirou o primeiro filme de ficção científica, de Georges Méliès (1902). A Lua era a mesma fronteira familiar e desconhecida que o mar representava para os gregos, e que Ulisses ousou percorrer, movido pela vontade de conhecer talvez o mais humano de todos os desejos.
Já não há mais mistério no mar, e viagens interplanetárias tornaram-se uma idéia comum. A tecnologia amplia o domínio do homem sobre a natureza, aí incluída a natureza humana - o Projeto Genoma, por exemplo, já está em fase avançada de mapeamento da cadeia genética do homem; os pais, em tese, poderão escolher o sexo dos filhos (procedimento já rotineiro), prevenir o surgimento de doenças como câncer, interferir na altura e peso que seus filhos terão quando adultos etc. Mesmo a inevitabilidade da morte biológica - a única certeza dada ao homem - está sendo desafiada por novas tecnologias, como a criogenia, o congelamento dos corpos ou só dos cérebros -, à espera do momento quando será possível ‘‘ressucitá-los’’ para serem regenerados (cérebros atualmente congelados, como o do psiquiatra Timothy Leary, poderão, em tese, ser adaptados a máquinas).
A marcha vertiginosa do conhecimento científico e tecnológico é inseparável do processo de construção da cultura ocidental.
O ‘‘penso logo existo’’ de René Descartes (1596 - 1650) foi o emblema de uma poderosa e profunda construção de discursos e saberes, nos séculos XVII e XVIII, que iria desembocar no Iluminismo - movimento que opôs as ‘‘luzes da Razão’’ às ‘‘trevas da superstição religiosa’’. A crença na Razão, ancorada nas necessidades de expansão da burguesia, impulsionou as descobertas científicas e o desenvolvimento da tecnologia.
Com Isaac Newton (1643 - 1727), o homem decifrou as leis que regulam as órbitas planetárias. Com Albert Einstein, no início do século XX, o homem aprendeu que tempo e espaço não são grandezas absolutas, e que matéria e energia são intercambiáveis. Niels Bohr e Werner Heisemberg, voltados para o microcosmo, construíram o modelo da mecânica quântica, o reino da indeterminação: o elétron pode ser partícula mas também onda; o espaço talvez não seja contínuo; é impossível determinar a exata localização do elétron em dado instante. Conhecer e viver o mundo tornaram-se operações inextricavelmente associadas ao saber científico e à prática mediada por artefatos tecnológicos.
O uso da tecnologia é tão disseminado que já não nos damos conta de sua existência. Os aparatos do cotidiano telefone, televisão, automóvel, avião, metrô, computador, Internet, relógio, bens de uso doméstico (enceradeira, forno de micro-ondas etc.), elevadores etc. - aparecem como algo ‘‘natural’’. Assim como é ‘‘natural’’ transformar desertos em oásis (ou desertificar áreas férteis, como na Amazônia), dessalinizar a água dos oceanos (ou inundá-las com petróleo), enviar artefatos a outros planetas, remover ou erguer montanhas, construir túneis imensos (como aquele que une a França à Grã-Bretanha sob o Canal da Mancha), acelerar ou brecar elétrons, transformar energia nuclear em eletricidade (ou reduzir civilizações a escombros radiativos, como em Hiroxima e Nagasáki, em 1945). Já nos acostumamos a acreditar que a ciência pode tudo.
As inovações tecnológicas são rapidamente incorporadas aos costumes, principalmente pelos jovens, como se a própria mudança permanente já fosse o esperado, como se já fizesse parte da tradição. Por exemplo, de modo geral, todos aceitam com certa naturalidade que uma rede como a Internet torne obsoleta a tradicional noção de territorialidade. Enquanto filósofos, cientistas sociais e artistas tentam elaborar modelos e teorias sobre o novo cenário cultural e geopolítico, a rede é freneticamente utilizada por 200 milhões de pessoas em todo o mundo.
Mas nem sempre foi assim: houve um tempo em que as mudanças tecnológicas aconteciam muito lentamente e eram fonte de temores e angústias, como na era das Navegações . Ou, se não quisermos retroceder tanto na história, basta lembrar o ingresso do mundo na era moderna. No livro ‘‘Orfeu Extático na Metrópole’’, o historiador Nicolau Sevcenko mostra, por exemplo, que quando carros e bondes chegaram a São Paulo, nas imediações dos anos 20, pedestres eram atropelados simplesmente porque não sabiam como calcular a velocidade das novas máquinas que dispensavam a tração animal.
Se o desenvolvimento tecnológico já não surpreende - não importa a medida e o alcance daquilo que realize ou prometa, é porque sedimentou-se na nossa cultura a noção de que nada mais resta fora do alcance dos laboratórios e dos cálculos computadorizados.
É como se tudo que a natureza tem a oferecer pudesse ser equacionado, dissecado, explicado e em seguida ultrapassado como algo já conhecido e já-sentido. Será sempre necessário e possível ir mais além. Na busca infinita desse ‘‘mais além’’ - o monolito metafórico de 2001 - uma odisséia no espaço , o homem coloniza, domestica a natureza, substituindo o processo cego das leis naturais pela conveniência por ele controlada. A tecnologia tende a abolir os limites entre “natureza” e “cultura”, subordinando a primeira à segunda.
Há os que vêem com otimismo esse processo, nele enxergando a liberação do homem das amarras de seu destino biológico (Leary, por exemplo, via na Internet uma possibilidade de construir um imenso cérebro planetário que poderia funcionar como a mente libertária da humanidade). Outros não são tão otimistas. Aldous Huxley, em seu Admirável Mundo Novo (1932), prevê o advento de uma sociedade totalitária, controlada pela tecnologia (seu Deus é Ford, o inventor da indústria do automóvel). Já no filme Blade Runner, os homens construirão robôs à sua imagem e semelhança, nos quais são implantados “chips” contendo memórias da infância, da família, dos afetos.
O mundo contemporâneo ainda não se transformou no centro de condicionamento huxleiano. Mas há na cultura um mal-estar provocado pelo desencanto em face da natureza e do próprio homem. Mesmo quando olhamos com espanto para a lua cheia numa noite de verão, já sabemos que o homem pisou sua superfície, que ali não há deuses nem magia. Somos, de certo modo, vítimas voluntárias da sedução tecnológica, e pagamos o preço de ter os nossos olhos cada vez mais fechados aos mistérios do mundo.
Boletim Mundo Ano 7 n° 4
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