sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Desastre financeiro abala crença no “Século do Pacífico

Desde o início do século XVI, por mais de quatro séculos, o Ocidente ascendeu na economia-mundo. (...) Em 1950, depois de um século e meio de industrialização ocidental, a sua parte na riqueza atingia 56%, enquanto a sua parte da população pairava em torno de 17%. A Ásia, com 66% da população global, controlava apenas 19% da riqueza, contra 58% em 1820. Em 1992, impulsionada por altas taxas de crescimento, a parcela asiática da riqueza tinha se elevado a 33%. Essa tendência histórica deve prosseguir e conduzirá à re -emergência da Ásia (...) Em torno de 2025, a Ásia deve reassumir o seu lugar no centro da economia-mundo. Ela poderá abrigar então 55% a 60% da riqueza, com a parcela do Ocidente retrocedendo dos 45% de hoje para algo entre 20% e 30%.
(Steven Radelet e Jeffrey Sachs, “A Reemergência da Ásia”, Revista Foreign Affairs, novembro-dezembro 1997, p. 44-46)
Gilson Schwartz
Quem não conhece o ditado. “Quando a esmola é demais, o santo desconfia”?
Olha aquele dinheiro todo, coloca a auréola no bolso e pergunta: é mesmo o caso de fazer o milagre que estão  querendo ?
Esse ditado funciona bem na Ásia. Durante muitos anos, ficaram falando de “milagre asiático” (também já se falou muito em “milagre brasileiro”). No ano passado, uma das maiores crises da história do capitalismo mostrou que o santo tinha pés de barro, o altar desmoronou e até agora se discute a razão da catástrofe.
O milagre era o seguinte: países pobres, sem tecnologia, que há 20 anos mal tinham recursos para alimentar suas populações, dominados por ditaduras sanguinárias e corruptas, de repente passaram a crescer muito. Da noite para o dia, setores industriais novos foram construídos. Classes médias fortes, educadas, com emprego garantido, começaram a fazer a festa. Empresas da Tailândia, Indonésia, Malásia fabricavam chips e componentes dos computadores que começavam a ser vendidos aos milhões nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina. A Ásia, que era exemplo de círculo vicioso da pobreza, virava o pólo econômico e tecnológico mais importante do planeta. Símbolo do novo milagre, a China, ditadura comunista, entrou na onda e patrocinou um fantástico programa de industrialização. Onde foi parar todo esse  milagre ?
Capitalismo é uma coisa até simples. O capitalista tem um estoque de riqueza.
Ele quer ver essa massa em movimento, retornando a ele maior. Ele quer acumular.
Quanto mais cresce a diferença entre o preço e o custo, mais rápido ele acumula. Contratar trabalhadores que ganhem o menos possível ou investir em novas tecnologias que serão seu monopólio (vide Bill Gates), o objetivo é sempre acumular o mais rápido possível.
Na Europa e nos Estados Unidos, a competição por mais lucros, mais mercados, mais consumidores e mais trabalhadores disciplinados e baratos durou séculos.
Surgiram grandes massas de consumidores. Jovens, enriquecendo e fazendo filhos.
Mas no século XX, depois de duas guerras, do envelhecimento das populações européias, da ocupação plena do território norte-americano e da conquista de um padrão de vida bastante razoável no chamado Primeiro Mundo, os capitalistas precisavam mais que nunca de outros consumidores jovens, enriquecendo e fazendo filhos. E os capitalistas precisavam fazer girar todo o capital acumulado ao longo da industrialização européia, para continuarem acumulando lucros.
A Ásia e a América Latina surgiram como as duas  grandes áreas candidatas a receber esses capitais, tornando-se parte integrante da acumulação de capital em escala global. Seus países já tinham crescido, com centros urbanos desde a época da colônia (quando exportavam produtos agrícolas, minerais, pedras preciosas ou madeira). O terreno parecia preparado para uma onda de expansão capaz de dar utilidade aos capitais velhos e, o que é ainda melhor, com taxas de retorno rápidas e elevadas.
Aliás, terminada a Segunda Guerra Mundial, o Japão e, depois, nos anos 50, a Coréia do Sul surgiam para os Estados Unidos como anteparos militares e econômicos contra a ameaça dos comunistas russos e chineses. No seu planejamento de poder global, os Estados Unidos queriam evitar que aqueles territórios caíssem nas mãos dos comunistas.
Juntaram-se  portanto a fome à vontade de comer. Primeiro o Japão, depois a Coréia  do Sul e, na seqüência, outros países que receberam o nome de “tigres” (exóticos, fortes,rápidos), foram considerados mercados prioritários no recebimento de ajuda financeira do governo norte-americano.
Santo capital. Populações que há pouco tinham saído de sociedades agrárias, com baixos salários, passaram a produzir em grande escala. Os governos do Japão e, depois, da Coréia do Sul, ditatoriais ou semi-ditatoriais, usaram o capital para criar capitalistas locais. Criaram bancos e indústrias, direcionaram o crédito para setores industriais capazes de produzir para os grandes e ricos mercados do Primeiro Mundo.
Surgiu um círculo virtuoso: o capital externo permitia a acumulação de capitais localmente que, sob o controle direto ou indireto dos governos, investiam em mais fábricas, na compra de tecnologias e na exploração de territórios da própria região. Japoneses investiram na Coréia do Sul, na Tailândia, na Indonésia. O “milagre asiático” parecia não ter fim. A entrada da China, com custos de produção reduzidíssimos, lubrificou ainda mais o sistema. Começaram a falar do século XXI como o “Século do Pacífico Asiático”.
Em julho do ano passado, a Tailândia começou a desvalorizar sua moeda, o baht. A taxa de câmbio é o preço da moeda local, expresso em dólar.
Como qualquer coisa no mercado, quando as pessoas preferem ficar com dólares, elas precisam se livrar da outra moeda (nesse caso, o baht), que passa a perder valor.
Antes de julho, a pressão já estava grande. O governo atendia à demanda, oferecendo dólares através do banco central, tentando fazer os compradores acreditarem que o câmbio não ia mudar. Mas as reservas de dólares estavam minguando e a procura ainda era grande. Quando ficou claro que não haveria dólares para todos os que desejavam se ver livres de bahts, veio a correria.
O pânico se alastrou.
Mas, afinal, por que tanta procura por dólar ? É que as empresas japonesas, coreanas, americanas, européias e também as tailandesas que tinham construído fábricas na Tailândia, precisavam pagar dívidas em dólar.
Remeter lucros em dólar. E pagar em dólar por matérias-primas, peças e tecnologia usadas para fazer a máquina asiática girar. Quando a desconfiança se alastrou, todos queriam ter dólares na mão.
Para piorar, a desvalorização tornou as dívidas em dólares mais caras. Se as empresas não podiam pagar, os bancos ficavam em má situação. A crise do câmbio, portanto, virava uma crise das empresas e, numa reação em cadeia, uma crise dos bancos também.
E aí ficou evidente que muitos dos capitais em busca de valorização tinham sido enterrados em projetos inviáveis e na especulação imobiliária.
No mercado financeiro mundial, olhando a corrida, quem tinha investido na Ásia colocou as barbas de molho. Não havia sequer informação suficiente sobre quem de fato tinha emprestado a quem, quanto e em quais condições. A Coréia do Sul já tinha investido na Tailândia, assim como os japoneses, mas havia também muito dinheiro de bancos chineses, que havia sido emprestado para bancos coreanos, que tinham emprestado para bancos tailandeses. Norte- americanos e europeus também estavam com dinheiro em risco.
O pânico foi total. O “santo” capital tinha pés de barro. Os investidores queriam lucros altos e retorno rápido. O risco de não ter retorno destruiu a fé no “milagre” asiático. Percebeu-se que faltava informação, que havia muita corrupção e envolvimento até de familiares dos ditadores asiáticos em “investimentos” que, na prática, eram apenas a compra de terrenos, a construção de palácios ou a compra de armas e bens de luxo.
Quando as coisas começaram a dar errado e o pânico se alastrou, ficou evidente que a euforia com o milagre criara a crença na acumulação de capital numa escala inviável, irreal. E quando o milagre é demais, os capitalistas que são menos “santinhos” logo desconfiam. A fuga de capitais criou um rastilho de desvalorizações cambiais e o aparecimento súbito de montanhas de dívidas impagáveis.
CAPITAIS FOGEM DAS “ECONOMIAS EMERGENTES
A crise significa o fim do desenvolvimento na Ásia ? Será que agora vai ocorrer um retorno ao estado de letargia semi-feudal anterior à industrialização acelerada ? E os governos, os bancos estatais, as grandes empresas criadas com subsídios do governo, crédito externo fácil ? Vai tudo por água abaixo ?
Para os mais otimistas, haverá um período de penitência. Os asiáticos não são mais tão dignos de confiança, vão enfrentar uma fase sem crédito no mercado. O governo dos Estados Unidos e o FMI, com o apoio das potências ocidentais, querem desmontar as barreiras à entrada que os asiáticos ergueram para defenderem seus mercados. Afirmam que foi justamente o caráter fechado, incestuoso e corrupto do capitalismo asiático que impediu a difusão de mais informação, levando a investimentos errados.
Querem um ajuste neoliberal, com redução do papel do Estado e eliminação de direitos trabalhistas, exatamente como têm feito os países da América Latina. Somente assim, podendo novamente acumular com rapidez e com lucros elevados, os capitalistas poderão novamente confiar na Ásia.
Outro grupo de observadores acredita que haverá penitência, mas os asiáticos não vão entregar os dedos, apenas os anéis. Dizem que a ajuda do FMI, dos Estados Unidos e de outras potências ocidentais não passa de obrigação.
Afinal, se esses governos e os credores ocidentais não tiverem solidariedade, afundarão junto. Na Ásia, a resistência à perda de controle nacional é milenar, já tendo aliás atravessado várias fases de colonialismo e imperialismo.
Na visão pragmática, apesar de toda a corrupção, dos investimentos em obras faraônicas, em pura especulação imobiliária ou em Bolsas da região, apesar de toda essa espuma de riqueza fictícia que é destruída pela crise, há uma base produtiva e tecnológica na Ásia que, de fato, pertence ao século XXI.
A Ásia criou redes de produção e investimento, sistemas de transporte e comunicações, métodos de gestão industrial e sistemas de pesquisa tecnológica que são de última geração. E lembram, ainda, que mesmo depois da crise a grande massa de trabalhadores e classe média - jovens, ambiciosos  e disciplinados - continuará lá. Trabalhadores e consumidores suficientes para assegurar taxas de retorno menos milagrosas, mas suficientemente altas, se comparadas às taxas no velho Primeiro Mundo.
Os investidores globais olham toda a periferia do sistema capitalista como uma espécie de categoria à parte. Há alguns anos esses países eram chamados de “subdesenvolvidos” (anos 50 e 60). Depois surgiu a moda dos “países em desenvolvimento” (anos 70). Nos anos 80, eram chamados de modo mais objetivo: eram os “países endividados”. Já nos anos 90, pegou a onda dos “mercados emergentes”.
Há três áreas emergentes: América Latina, Ásia do leste e sudeste e Europa centro-oriental. Na hora do pânico, a contaminação passa por cima até mesmo da informação disponível que, segundo os neoliberais, seria a melhor forma de garantir decisões racionais. É como o estouro de uma boiada. A fuga de capitais ocorre de forma desenfreada (veja o mapa). O dinheiro global prefere refugiar-se no Primeiro Mundo, de preferência em títulos do Tesouro dos Estados Unidos. O retorno é muito menor, em prazos muito mais longos. Mas é considerado seguro.
E as “economias emergentes”, sem capitais, mergulham na recessão.
O Brasil é apenas mais um mercado emergente. Quando a confiança nos mercados emergentes cai, os investidores olham com medo para o Brasil também.O medo é ainda maior quando, olhando os dados disponíveis, os pesquisadores que ganham para fazer isso percebem que essa também é uma terra de milagres.
Milagres movidos a enxurrada de capital estrangeiro, mas que, sabe-se lá, talvez também tenham seus santos de pés de barro. Ou seriam santos do pau oco ?
Boletim Mundo Ano 6 n° 1

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