segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Da Cisplatina ao Mercosul, o jogo diplomático do Itamaraty

J. B. Natali
Olhar atentamente para o mapa da América do Sul pode ser uma lição instrutiva. Nota-se logo que o antigo território colonial português manteve sua unidade geográfica, enquanto o antigo território colonial espanhol se esfacelou em países de pequeno ou médio porte. O que está por detrás disso é o resultado de uma hábil e demorada operação de engenharia diplomática.
As elites brasileiras conceberam a preservação dessa continuidade territorial. Esforçaram-se para que não se separassem do Brasil herdado de Portugal os trechos da Bacia do Prata e a Bacia do Amazonas que existiam no interior das fronteiras coloniais. A lógica foi bem complicada. Implicou oscilar entre negociações e guerras, curvar-se ou se contrapor a interesses geopolíticos europeus e americanos. Não foi um processo linear de sucessos. Mas o resultado é, de certo modo, invejável.
A história começa logo depois da Independência.
Em seu “Manifesto às Nações Amigas”, de 6 de agosto de 1822, José Bonifácio de Andrada apresenta o Brasil soberano à comunidade internacional e reivindica seus direitos. Mas diplomacia não é apenas um conjunto de belas palavras. Ela é também o resultado da correlação momentânea de forças. A Inglaterra estava preocupada com o peso excessivo dos brasileiros na Bacia do Prata. O Uruguai não existia ainda como país independente. Havia sido anexado ao Brasil por D. João VI, sob o nome de Província Cisplatina.
A Argentina também estava de olho no Uruguai. Em 1825, seu Congresso vota a anexação do território vizinho.
Barcos de guerra brasileiros cercam o porto de Buenos Aires. A guerra não ocorreu porque, por detrás das tensões, a Inglaterra tinha um plano detalhado de criar um Uruguai independente e, com isso, dividir com um novo parceiro a navegabilidade das águas do Prata.
Os argentinos não desistem. Eles têm um projeto geopolítico maior que o território que controlam.
Manuel Rosas (1835-1852) sonha em reconstituir a unidade de um vice-reinado colonial que também contava com o Uruguai, o Paraguai e parte do Peru.
O Brasil responde ao se aliar ao Paraguai e às províncias argentinas de Corrientes e Entre-Rios. No rápido conflito, são depostos Oribe (governante uruguaio, partidário da unificação com a Argentina) e o próprio Rosas. Enquanto isso, o Brasil manteria fechada até 1866 a navegação estrangeira no rio Amazonas. Se cedesse às pressões, não teria condições militares para controlar uma ocupação estrangeira. A prioridade continuava sendo o Cone Sul. O Prata e seus afluentes eram o único meio de transporte regular entre o Rio de Janeiro e Mato Grosso. Estamos falando do século XIX, antes das estradas de ferro, com ou sem a navegação a vapor.
A emergência de uma potência regional que controlasse o Prata acabaria por dividir o Brasil em dois.
Essa potência foi o Paraguai de Solano López. A Guerra do Paraguai foi  aquela carnificina que todos sabem.
Depois dela, o Brasil apostou na estabilização das fronteiras no Cone Sul. Estava em parte certo. Quando os argentinos ficaram de olho gordo no Chile, o governo imperial brasileiro reforçou seus vínculos com Santiago.
A Bolívia e o Paraguai (que perdeu terras para a Argentina) atingiram seus atuais contornos.
Chegara o momento, no final do Segundo Império, de negociar minuciosamente as fronteiras.
Não para agradar os geógrafos. Mas para fazer com que desaparecessem motivos para novos conflitos. O princípio, coerentemente adotado pelo Brasil, foi o douti possidetis: em negociações bilaterais, os tratados de limites entre Portugal e Espanha só seriam considerados para desempatar pequenas dúvidas; valeria como critério a ocupação das terras. Se brasileiros a ocupavam, era território brasileiro. A República herdou essa questão resolvida, exceto com a Argentina, as Guianas e a Colômbia. Para terminar a tarefa, entrou em cena o barão do Rio Branco, ministro do exterior entre 1902 e 1912.
Desde 1823 a Doutrina Monroe foi uma referência militar e diplomática - por ela, os Estados Unidos considerariam uma “agressão” a seu próprio território qualquer tentativa européia de recolonizar terras das Américas. Mas sua aplicação por Washington foi o pretexto para o exercício de uma nova e mais agressiva forma de imperialismo na América Central e no Caribe. Na América do Sul, com fronteiras estáveis, o “pan americanismo” derivado de Monroe se tornou uma forma de aceitação menos dolorosa da dependência aos Estados Unidos. Com o fim da monarquia, o Brasil chegou a sentir no pan americanismo um instrumento de identidade republicana, de inserção ao modelo político em vigor no continente.
Vem, em 1945, a Guerra Fria. O alinhamento do Brasil é parcial. Em 1958, o governo Kubitschek lança a idéia de integração dos interesses regionais (latino-americanos), em resposta à atenção excessiva que Washington prestava à Europa. Os Estados Unidos reagem. Criam o Banco Interamericano de Desenvolvimento para financiar projetos. Reforçariam o caixa para conter a expansão do “mau exemplo” da Revolução Cubana, vitoriosa em 1959. Em termos regionais, a política de não-alinhamento (governos Jânio Quadros e João Goulart) se traduz por maior atenção aos vizinhos da América do Sul. Mas o golpe militar de 1964 acaba com isso. Realinhado a Washington, o Brasil chega a enviar tropas para combater “o comunismo” na distante República Dominicana.
Em 1971, o Brasil assina com o Paraguai o tratado que permitirá a construção da hidrelétrica de Itaipu. Os argentinos reagem. Em caso de conflito regional, argumentam, bastará ao Brasil bombardear a barragem para inundar Buenos Aires. Mas as ditaduras militares acabam por se entender. Em nome do suposto combate ao comunismo, fazem o intercâmbio entre suas polícias e extraditam ilegalmente dissidentes.
O grande salto viria em 1986. Brasil e Argentina, redemocratizados, decidem abrir para a inspeção mútua suas instalações militares (os dois países preparavam, escondidos, a bomba atômica). Sarney e Alfonsin chegam à conclusão que diplomacia não basta.
O mundo está caminhando para a formação de blocos econômicos. Associados ao Uruguai e ao Paraguai, formam o Mercosul. A lógica não é mais a das chancelarias. Trata-se de provocar uma interdependência consentida entre os sistemas produtivos de cada país. A receita fora já adotada pela Europa.
Em tempos de globalização, juntam-se esforços para a “guerra” econômica pela conquista de mercados.
Boletim Mundo Ano 6 n° 2

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