segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

EURO RELANÇA SONHO DA UNIÃO E FERMENTA RIVALIDADES NACIONAIS

A história política da Europa caracterizou-se pela impressionante diversidade de povos, nações, Estados e impérios e pela incessante e muitas vezes  violenta competição entre eles. Em síntese, nenhum continente foi externamente mais precariamente definido, internamente mais diverso ou historicamente mais desordenado. Contudo, nenhum continente gerou mais projetos para a sua própria ordeira unificação. (...) O problema é que os projetos pacíficos para a unificação européia não foram implementados, enquanto os que foram implementados não eram pacíficos.
(Timothy Garton Ash, “A ordem liberal européia ameaçada”, Foreign Affairs, march-april 1998, p. 53-54)
As cartas estão, finalmente, sobre a mesa. Seis anos depois da assinatura do Tratado de Maastricht, que definiu a meta da União Econômica e Monetária (UEM), a União Européia divulgou a lista dos países que devem adotar o euro, em janeiro de 1999. O drama e os episódios cômicos dos últimos dois anos - nos quais os candidatos à adoção da moeda única abusaram da criatividade para fechar as suas contas dentro dos critérios de Maastricht - são parte do passado. Final feliz: apenas a Grécia foi excluída da fase inaugural da UEM, em função do seu elevado déficit público.
Nada menos que onze países foram admitidos. A Grã-Bretanha e a Dinamarca ficam de fora por vontade própria. A Suécia alega não estar preparada, ainda. A Europa do Euro abrange 290 milhões de habitantes, concentra 19,4% do PIB mundial e realiza 18,6% do comércio global.
Tudo começou com o Tratado de Roma, de 1957, que criou a Comunidade Econômica Européia (CEE), agrupando França, Alemanha Ocidental, Itália e os países do Benelux. No centro da construção geopolítica estava a aliança entre franceses e alemães-ocidentais, destinada a suprimir as velhas rivalidades nacionalistas que incendiaram duas vezes a Europa durante o século XX. O pano de fundo do projeto era constituído pela bipolaridade da Guerra Fria. A aliança franco-alemã funcionava como pilar europeu da solidariedade transatlântica expressa através da OTAN. A liderança estratégica dos Estados Unidos e a ameaça representada pela União Soviética formavam as balizas da Europa comunitária.
O fim da Guerra Fria dissolveu o substrato geopolítico da construção comunitária. A queda do Muro de Berlim (1989), a reunificação alemã (1990) e a implosão da União Soviética (1991) revelaram a fragilidade histórica dos alicerces da Comunidade. A nova Alemanha reunificada ativou, sobretudo em mentes francesas, os pesadelos do passado. A dissipação - ao menos parcial da ameaça externa trouxe à tona o espectro dos nacionalismos rivais.
O Tratado de Maastricht foi a resposta européia (isto é, essencialmente franco-alemã) ao panorama novo que se descortinava. A opção consistiu em aprofundar a integração, radicalmente, através do projeto da moeda única. Dessa forma, um aspecto vital da soberania dos Estados - o controle sobre a política monetária - passaria a ser compartilhado.
Um vínculo tão forte, cuja ruptura acarretaria conseqüências econômicas duradouras e de extrema gravidade, funcionaria como contrato de parceria e amizade de longo prazo. O euro está sendo criado por razões políticas, ainda que venha a repercutir na competição econômica global.
Chegou a hora da verdade. Em julho, serão nomeados os dirigentes do Banco Central Europeu, que se instalará em Frankfurt (Alemanha). Em janeiro, devem ser fixadas as taxas de conversão das moedas nacionais e, assim, o euro voa para fora da gaiola. Em 2002, entram em circulação as notas e moedas de euro para substituir, em seis meses, o papel-moeda nacional, relíquia de outra época. Pelo menos, esse é o enredo anunciado da novela monetária européia.
Há quem enxergue, em tudo isso, um roteiro para o desastre. Martin Feldstein, da Universidade de Harvard, escreveu, em Foreign Affairs, que o euro “mudará a natureza política da Europa de forma a gerar conflitos intra-europeus e confrontações com os Estados Unidos”. O seu argumento central reside no caráter inconciliável das expectativas alemãs e francesas. Os alemães enxergam no euro um clone do marco e esperam que o Banco Central Europeu desenvolva uma rígida política monetária, evitando a inflação mesmo que à custa de juros altos e desemprego. Os franceses pressionam por uma política monetária frouxa, direcionada sobretudo  para o combate ao desemprego, mesmo que à custa de um euro fraco. Os alemães querem um Banco Central Europeu independente dos políticos, no figurino do Bundesbank, a autoridade monetária alemã. Os franceses querem que as suas necessidades políticas determinem os rumos monetários europeus.
O historiador britânico Timothy Garton Ash, em ensaio para outro número de Foreign Affairs, avalia que o euro, imaginado como “passo decisivo para unir a Europa”, parece agora “destinado a dividir mesmo aqueles que participam da união monetária”. Garton Ash segue a trilha de Feldstein, mas vai mais longe e mais fundo. O seu argumento é que a política monetária  isto é, as decisões sobre juros e inflação – sempre implica compromissos entre diferentes grupos sociais e regiões geográficas, que têm necessidades e vontades diversas.
No Estado nacional, é a soberania popular que define, através de representantes eleitos, a divisão de benefícios e prejuízos embutida, em cada momento, nesses compromissos. Mas a União Européia não é um Estado nacional.
Falta-lhe, portanto, a base de legitimidade política para forjar consensos. Nessas condições, a marcha forçada rumo ao euro é o pavio aceso de batalhas entre Estados nacionais pelo controle sobre a política monetária européia.
Os críticos podem estar certos ou errados nas suas conclusões. Mas, pelo menos, miram seus holofotes na discussão verdadeira. A integração européia em geral, e o euro em particular, representam desafios nacionais e remetem à conturbada história política das rivalidades européias. Não são assunto para economistas, financistas ou administradores.
Boletim Mundo Ano 6 n° 3

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