Iene em queda livre reflete esgotamento do modelo econômico e projeta outra rodada de desvalorizações cambiais, que desta vez pode atingir a China
O samurai está doente. Em junho, o governo japonês reconheceu, oficialmente, que o país mergulhou em recessão. Antes de uma intervenção conjunta dos bancos centrais americano e japonês, o iene atingiu o seu nível mais baixo em oito anos, chegando a ser cotado a 147 por dólar. A taxa de desemprego, no ponto de partida da recessão, alcançou 4,1%, recorde no pós-guerra. Em julho, o Partido Liberal Democrático, no poder, perdeu as eleições para renovação de metade do Senado e o primeiro-ministro Ryutaro Hashimoto renunciou.
Recessões são um fato da vida na economia de mercado. Elas correspondem a um segmento da curva habitual do ciclo econômico. Normalmente, são combatidas com a arma da redução das taxas de juros, que torna o dinheiro mais barato estimulando o consumo e o investimento. Mas, algumas vezes, assinalam um fenômeno mais profundo o esgotamento do modelo econômico vigente. É o que acontece hoje com o samurai. Prova disso é que a taxa de juros, antes da recessão, já se encontrava no nível mais baixo da história do país - 0,5% ao ano.
A crise asiática feriu as empresas japonesas instaladas nos “tigres” orientais e machucou ainda mais os bancos do país, que choram empréstimos perdidos na Coréia do Sul, Tailândia e Indonésia. Mas a recessão não é uma doença importada. O samurai está doente desde o início da década, quando o crescimento do PIB desacelerou-se repentinamente e, ano após ano, rondou o zero.
A doença é congênita e seu vírus foi contraído há mais de uma década.
Durante a fase de prosperidade dos anos 80, a riqueza inflou artificialmente os preços da terra e das ações.
Em 1990, os preços dos imóveis eram seis vezes maiores que aqueles registrados em 1976. No mercado acionário, a especulação desenfreada multiplicou por 14 os valores dos anos 70 A bolha especulativa explodiu no início desta década, arrastando com ela toda a economia. Os imóveis e ações supervalorizados funcionavam como garantia para o capital emprestado pelos bancos às empresas. A repentina perda de valor desses bens deixou o sistema financeiro a descoberto. O Ministério das Finanças estima em 550 bilhões de dólares o total de “créditos podres” dos bancos. Analistas privados imaginam que o número verdadeiro possa ser quase o dobro disso. Ou seja, bem mais que o PIB brasileiro...
O “milagre japonês” do pós guerra fundamentou-se na articulação entre bancos e indústrias, sob o manto do planejamento estatal. O Ministério da Indústria e do Comércio Exterior (MITI) encarregava-se de incentivar um grupo privilegiado de indústrias, através de medidas protecionistas. Os bancos, irrigados por elevadas taxas de poupança popular, emprestavam com desprendimento para as indústrias privilegiadas, a prazo longo e juros baixos. Enquanto o sistema funcionou, o samurai assustou e maravilhou o mundo, invadindo o mercado externo com produtos baratos, confiáveis, inovadores.
O modelo econômico encontrou seus limites. A competição globalizada entre as grandes corporações, sobre o pano de fundo da revolução tecno científica, está revelando o anacronismo das armas do samurai. Enquanto isso, a economia americana recuperou a capacidade de inovação que falta ao Japão.
A liderança recuperada dos Estados Unidos assenta-se, em parte, nas novas empresas e nos novos produtos da revolução tecno científica. O Japão, que investiu pesadamente na automação das indústrias mecânicas, foi incapaz de seguir a reviravolta global na direção das indústrias da informação e das telecomunicações. O sistema do amparo estatal - que por décadas nutriu sucessos como os da Sony, da Toyota, da Sanyo e da Mitsubishi mostrou-se inadequado para inventar empresas como a Microsoft, a Intel, a Compaq e a Motorola ou marcas como Coca-Cola e McDonald’s.
Na era da economia globalizada, o dinamismo do mercado interno faz a diferença. Nos Estados Unidos, a cultura do consumo acirra a competição e comprime os preços, elimina empresas ultrapassadas e gera novas oportunidades e empregos. No Japão, a cultura da poupança e a rigidez do mercado de trabalho limitam a inovação.
Nos períodos de mutação econômica e tecnológica acelerada, as velhas vantagens transformam-se em desvantagens fatais.
A moeda conta a última parte da história. Em 1993, um dólar equivalia a 120 ienes. Em 1995, 80 ienes compravam um dólar. Enquanto a moeda do samurai conhecia valorização de 33%, as moedas dos “tigres” do leste asiático permaneciam ancoradas ao dólar. A concorrência das empresas de Taiwan, no ramo da microeletrônica, e da Coréia do Sul, nos ramos da siderurgia e da mecânica, engolia fatias dos lucros das corporações japonesas e encurtava o atalho para a recessão.
A recessão japonesa assinala um novo capítulo da crise asiática. O desabamento da cotação do iene, que tende a reduzir as importações japonesas, é péssima notícia para os “tigres” hospitalizados, que precisam aumentar as suas exportações. O pior dos pesadelos seria uma nova queda do iene, deflagrando rodadas sucessivas de desvalorizações nos “tigres” e na China. Foi para evitar a espiral enlouquecida que os Estados Unidos entraram no jogo, vendendo dólares e comprando ienes.
A intervenção funcionou, temporariamente.
Mas a saúde do samurai continua a preocupar. E uma recaída afetaria o mundo inteiro...
Boletim Mundo Ano 6 n° 4
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