O mundo não está na depressão nem é provável uma reprise em plena escala dos anos 30. Mas grandes áreas da economia mundial estão deprimidas - por um motivo ou por outro, parece que não conseguem ou não querem adotar política macroeconômica para restabelecer o pleno emprego. Nações com “mercados emergentes”, que têm terrível receio da evasão de capitais, não ousam fazer crescer suas economias; ao contrário, vemos a principal economia do momento, o Brasil, ser forçada, por recear os especuladores, a agir de modo totalmente antikeynesiano: aumentar as taxas de juros, elevar impostos e reduzir gastos, mesmo quando a economia caminha para a horrível recessão.
(Paul Krugman, “A crise econômica é uma crise para a economia?”, O Estado de S. Paulo, 19 de novembro de 1998)
No meio da tragédia, o Brasil sendo o Brasil, houve tempo para a comédia involuntária. Ao anunciar, em 13 de janeiro, a desvalorização do real, Francisco Lopes, o então novo (e agora já velho) presidente do Banco Central, explicou que passaria a vigorar um sistema de “banda larga com movimento endógeno na diagonal”. Um dia de frenética especulação financeira foi suficiente para simplificar a linguagem e transportar Lopes para a realidade: o Brasil adotou a livre flutuação cambial.
O Plano Real acabou no 14 de janeiro.
Durou exatamente 1.657 dias, desde a substituição do cruzeiro - a velha moeda inflacionada, lembram-se? a 1 de julho de 1994. Naquela data que já parece tão distante, nasceu o real, ancorado ao dólar e destinado a dissolver a “economia da inflação” que regulava as relações econômicas no interior da sociedade e entre a sociedade e o Estado.
A inflação perpetuamente reciclada extorquia os pobres que, por estarem fora do mercado financeiro, assistiam à redução diária do valor real dos seus salários e aposentadorias. Essa renda era embolsada, ao menos em parte, por todos os que possuíam aplicações financeiras. Desse modo, a inflação redistribuía perversamente a renda nacional, conservando e até alargando as enormes e históricas desigualdades sociais.
A inflação reciclada sempre em patamares mais elevados também financiava os gastos públicos. As receitas tributárias eram corrigidas diariamente, conservando seu valor real, enquanto as despesas eram corrigidas com atraso, perdendo valor real.
Assim, a inflação desviava riqueza da sociedade para o Estado, garantindo sem aumentos de impostos as fontes da gastança de políticos associados aos governos federal, estaduais e municipais.
O Plano Real eliminou o “imposto inflacionário” que extorquia renda dos pobres, proporcionando - ao menos nos dois primeiros anos - uma elevação significativa do padrão de consumo da maioria da população.
As vendas de laticínios, frango, roupas, eletrodomésticos e materiais de construção refletiram a mudança, que foi o fundamento da vasta sustentação popular alcançada pelo governo de FHC. Esse fenômeno custou a Lula a derrota numa eleição que parecia ganha e ainda permitiu, quatro anos depois, a tranqüila reeleição do presidente.
Mas o Plano Real fechou a torneira que financiava os gastos do Estado através da transferência disfarçada de riquezas de toda a sociedade. A União encontrou, então, outra torneira: a emissão de títulos de dívida pública. O déficit público saltou de 4,1% do PIB em 1994 para 8,4% do PIB em 1998. Enquanto isso, os governos estaduais submergiram num oceano de dívidas, que foram renegociadas a juros menores com a União, entre 1997 e 1998, e mesmo assim foram agora declaradas “impagáveis” pelos novos governadores de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro.
A estabilidade da moeda foi alcançada, no início do Plano Real, pelo uso da âncora cambial, que atrelava a moeda ao dólar . Essa âncora estava amarrada ao fluxo de dólares que procuravam o Brasil para investimentos diretos ou financeiros. Os recursos externos garantiam a taxa de câmbio do real e, no fundo, alimentavam os gastos públicos não cobertos pelos impostos. No fim das contas, o Estado brasileiro vivia além dos seus recursos, alimentando-se de riqueza importada e volátil.
A crise mexicana de dezembro de 1994 mostrou, apenas seis meses após o lançamento do real, que a festa não duraria para sempre. Assustados com os riscos de desvalorização nos mercados emergentes, capitais de curto prazo fugiram do Brasil, pressionando a taxa de câmbio do real. O governo reagiu aumentando os juros (para atrair capitais) e iniciando um movimento de suave desvalorização da moeda (para aumentar as exportações e, com isso, aumentar as reservas cambiais).
FUGA DE CAPITAIS
No mundo dos mercados financeiros globalizados, os capitais são muito sensíveis ao risco . A fuga de capitais do México foi provocada, entre outros fatores, pelo alto déficit público, insustentável a longo prazo. Os investidores retiraram seus recursos com medo da insolvência. Os especuladores aproveitaram para ganhar dinheiro, vendendo pesos antes da desvalorização e recomprando-os, a um preço muito menor, logo depois. Daí, a lição: só reduzindo o déficit público seria possível conservar o fluxo de recursos para o Brasil.
FHC, contudo, fez outra opção.
Dedicou-se, em 1996, a articular o projeto de reeleição, costurando uma vasta aliança política. O fundamento da aliança era a extensão da reeleição para governadores e a reprodução ampliada do arco de forças partidárias que participou da vitória eleitoral de 1994. Reduzir gastos públicos ou aumentar impostos eram hipóteses descartadas: o déficit público soldava o projeto da reeleição, atendendo aos interesses de uma elite política patrimonialista.
A tradução econômica do projeto político da reeleição exigia uma aposta na sorte. Era preciso acreditar que a economia mundial não seria varrida por turbulências, que não se registrariam momentos de pânico, que os capitais continuariam a fluir para o Brasil. Se tudo corresse bem,após a reeleição haveria tempo para finalmente cuidar do déficit público.
A aposta ruiu no segundo semestre de 1997, esmagada pelo impacto da crise asiática. Novas fugas de capitais e ataques especulativos obrigaram o Banco Central a jogar os juros para as nuvens, engordando ainda mais o déficit público. A reeleição seria conduzida em ambiente de estagnação econômica e tensão financeira. O relutante Lula animou-se a competir, depois de quase passar o bastão para que outro se sacrificasse.
Mas a “crise asiática” era global.
Agosto, o mês do infortúnio, trouxe o colapso da Rússia, com moratória e tudo. No Brasil, os juros voltaram à estratosfera, sem nenhum efeito útil. Enquanto bilhões de dólares abandonavam os títulos do governo e as bolsas de valores, Fernando Henrique conseguia o almejado novo mandato.
Em seguida, antes do segundo turno nos estados, o governo pedia socorro ao FMI. O triste fim da história provou que nenhuma muralha de ajuda financeira é capaz de suportar o bombardeio dos fluxos globais de capitais.
Agora, nada será como antes. O real desvalorizado muda as relações entre o Brasil e a economia global. Na Argentina, há os que profetizam a morte do Mercosul.
Aqui dentro, há os que prevêm a recuperação de ramos industriais agonizantes. Uma recessão está, oficialmente, instalada. Os pessimistas já usam a palavra maldita: depressão.
E a inflação? O seu tamanho dependerá das formas que o Estado encontrará para se financiar. Em economia, tudo acaba na política.
O DÓLAR E A BANANA o meio da tragédia, o Brasil (UMA LIÇÃO SOBRE CÂMBIO NA GLOBALIZAÇÃO
Os economistas gostam de metáforas para tratar de temas complexos. O ex-presidente do Banco Central, defensor intransigente de um real forte, Gustavo Franco, tornou célebre uma comparação entre a taxa de câmbio e as bananas. Os críticos da política econômica do governo Fernando Henrique diziam que o preço do real em termos de dólar (ou seja, a taxa de câmbio do real) era irreal. Alertavam para o “atraso cambial”. Ou seja, comparado à variação de outros preços, no Brasil e no exterior, o real teria ficado defasado. Precisava ser desvalorizado.
Gustavo Franco, então no auge do seu prestígio, escreveu um longo texto em que fazia piada, comparando o conceito de defasagem cambial ao de defasagem “bananal”.
Afinal, argumentava, quem pode provar que o preço da banana está “atrasado” em relação ao preço de qualquer outra coisa? A comparação entre o preço de uma moeda e o preço de um produto, como a banana, é válida, pelo menos até certo ponto. Moedas, bananas, automóveis ou empregos têm algo em comum. Quanto mais abundantes, mais baratos. Quanto mais escassos, mais caros. É a velha lei da oferta e da procura.
Não existe um padrão de comparação estável ou aceito universalmente. Ao contrário do espaço, que pode ser medido a partir de um padrão (metros, quilômetros ou anos-luz), a medida do valor das coisas só pode ser feita a partir de critérios imprecisos e sujeitos sempre a muita discussão. Portanto, não teria sentido falar em “atraso cambial”.
BANANA CRESCE SOZINHA, JÁ O DÓLAR...
Mas a validade da comparação entre bananas e moedas termina aí. No caso do real, a sua taxa de câmbio depende da oferta maior ou menor de dólares no mercado.
Oferta que, se não atender a todos os indivíduos, empresas e bancos que precisam de dólares, tornará o dólar mais caro no país. A banana pode ser cultivada por qualquer caiçara e, dizem, cresce até sozinha. Já a disponibilidade de moeda estrangeira depende de fatores que estão, em parte, fora do alcance do país que cultiva bananas:
1. capacidade que o país tem de conservar saldos positivos na balança comercial;
2. possibilidade de atrair mais turistas do que envia ao exterior;
3. capacidade de levantar empréstimos nos mercados internacionais, sob as mais variadas formas;
4. capacidade de atrair investidores estrangeiros.
Desde o início dos anos 90, os países mais ricos estavam ficando a tal ponto mais e mais ricos, que seus dólares, ao menos em parte, foram direcionados para oportunidades de negócio em países mais pobres. Era um cenário de abundância na oferta de dólares.
A oferta abundante de dólares a serviço da globalização não podia criar uma situação diferente da que ocorre num mercado de bananas em que há bananas demais. Nos mercados emergentes, o excesso de oferta de dólares levou ao barateamento do dólar. Com o dólar barato, aumentaram as importações de produtos estrangeiros e o fluxo de turistas para o exterior.
EUFORIA E DESASTRE
Resultado: criaram-se saldos negativos crescentes na balança comercial. O balanço de pagamentos também passou a exibir déficit cada vez maior, com o aumento do fluxo de turistas para o exterior e do valor, em dólares, das remessas de lucros de empresas multinacionais para seus países de origem. Assim, a globalização revelou seu lado perverso: a abertura rápida demais, até mesmo estimulada pela entrada de capitais externos, provocou enormes desequilíbrios nos mercados emergentes. Alguns tentaram se defender.
O Chile, por exemplo, criou barreiras à entrada de capitais externos. Mas o Brasil, em plena euforia do real forte, tomou um verdadeiro porre de globalização.
Depois de tudo, em meio à debandada de dólares, ficou claro que o dólar não é como a banana. A oferta de dólares é volátil, reage aos humores dos mercados financeiros - uma bravata do Itamar Franco, por exemplo, pode tornar a saída de capitais ainda mais violenta. Ficou claro, enfim, que somente um governo tem controle sobre a oferta de dólares. É o governo dos Estados Unidos, o caiçara da banana globalizada.
GLOSSÁRIO
Balança comercial: saldo entre as exportações e as importações de mercadorias.
Balanço de pagamentos: Saldo entre todas as entradas e saídas de moeda estrangeira, incluindo os fluxos de turistas, os investimentos no país, os desembolsos de juros da dívida externa, os empréstimos levantados no exterior e as remessas de lucros de empresas multinacionais para seus países de origem. A balança comercial é um item do balanço de pagamentos.
Déficit público: Saldo negativo da diferença entre a receita e os gastos do Estado.
Elite política patrimonialista: Elite política que atua como se o Estado fosse seu patrimônio particular, orientando gastos em função de interesses partidários ou familiares.
Investimentos diretos ou financeiros: Os investimentos internacionais diretos são aqueles direcionados para o setor produtivo, através da implantação de filiais ou da compra de empresas nacionais. Os investimentos internacionais financeiros são aplicações em títulos do governo ou ações de empresas negociadas nas bolsas de valores nacionais.
Moratória: Suspensão temporária de pagamentos da dívida externa ou da dívida interna.
Receitas tributárias: Recursos arrecadados pelo Estado através de impostos.
Reservas cambiais: Recursos em dólares ou outras moedas estrangeiras de posse do Banco Central, que servem para desembolsos ligados à divida externa ou para defender a taxa de câmbio da moeda nacional.
Boletim Mundo Ano 7 n° 1
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