quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

NACIONALISMO, FACA DE DOIS GUMES

J. B. Natali
É relativamente nova a idéia de que uma nação - comunidade com identidade cultural própria, com um idioma diferenciado dos demais - tem o direito de gerir seu próprio destino, de governar a si própria e se dotar de um Estado. É algo que amadureceu no século XIX, quando o mapa da Europa permitia visualizar uma flagrante contradição a esse princípio. Nele, dois impérios pluri nacionais predominavam no centro e no sudeste: o Áustro-Húngaro e o Otomano.
A Áustria-Hungria compreendia dez grandes grupos de nítida identidade nacional e muitos outros de menor expressão numérica. Eram romenos ou tchecos, poloneses ou ucranianos, eslovenos ou servo-croatas, alemães ou eslovacos. O Império Otomano - antecessor da atual Turquia e núcleo do poder islâmico - dominava total ou parcialmente territórios de cultura  búlgara ou grega, albanesa ou armênia.
Mas, além dessas duas grandes colchas de retalhos sob o controle político de um mesmo Estado, o século passado também registrou  na Alemanha e na Itália  dois grandes movimentos integradores. Por meio deles, Estados com nítidas afinidades nacionais com outros Estados se unificaram para formarem uma instituição política de maior presença geográfica e maior poder de barganha. No caso italiano, Piemonte, Lombardia e Vêneto passaram a se reconhecer como Estados de uma só nação, o mesmo ocorrendo com os alemães, em processo desencadeado a partir da predominância política e econômica da Prússia.
O esfacelamento da Áustria e da Turquia e a unificação da Itália e da Alemanha exemplificam transformações efetuadas em nome do Estado-Nação. É uma forma de organização política que prevalecerá até que, bem mais recentemente, a soberania ilimitada que ele exerce sobre seu território seja questionada pela formação de blocos (União Européia) ou pela globalização (livre fluxo de capitais e mercadorias, por meio da eliminação de controles de câmbio e redução das barreiras alfandegárias).
As raízes do Estado nacional estão fincadas no final do século XVIII, na Revolução Francesa. Ameaçada militarmente por ingleses, prussianos e austríacos, ela conseguiu criar algo até então inédito: a consciência de que o Estado garantia a sobrevivência, a soberania e a aplicação das leis da nação, dentro de uma nova ordem política burguesa. Caberia ao “cidadão” proteger sua pátria, e não mais aos exércitos chefiados pela nobreza aplicar estratégias elaboradas em nome dos interesses geopolíticos da monarquia.
Detalhe mais que importante: não foi com a Revolução Francesa que apareceu outro sentimento bem mais específico, o nacionalismo. Os jacobinos se bateram pela República contra seus inimigos externos, mas não contra a diversidade nacional que coexistia dentro da própria França (bretões, catalães, alsacianos ou bascos constituíam pequenas nações dentro do novo Estado republicano). E ainda: com Napoleão, cônsul e em seguida imperador, as conquistas territoriais efetuadas pela França não eram necessariamente vistas pela burguesia liberal dos países conquistados como uma “invasão estrangeira”. Tratava-se, isto sim, do alastramento patrocinado pelos franceses de certos princípios básicos da democracia moderna, como o da igualdade civil ou tributária perante a lei.
O nacionalismo surgiu só por volta de 1870, quando o mapa ideológico da Europa já estava bastante transformado.
Poloneses passaram a reivindicar um Estado, a partir de um território dividido entre a Áustria-Hungria e o Império Russo. Os gregos (que são cristãos) quiseram se libertar da Turquia, os lituanos da Rússia, os irlandeses da Inglaterra. São apenas alguns dos múltiplos exemplos.
Nada mais compreensível que o princípio que leva um povo a reivindicar liberdade de exercício de sua soberania, entregue no passado em troca de proteção militar ou pura e simplesmente usurpada por uma potência imperial, que passava a ser vista como não-nacional, como “estrangeira”.
O nacionalismo nasceu, desse modo, como o instrumento político pelo qual se combateu o imperialismo.
Mas o nacionalismo é uma terrível faca de dois gumes.
Ele tem como base o processo de auto-afirmação política e cultural. Pode facilmente se exacerbar contra o inimigo de fora (o estrangeiro no território externo). Mas também pode se exacerbar contra um suposto “inimigo de dentro” (o “estrangeiro” no território interno). De força motriz para a solidificação do Estado nacional, o nacionalismo passa a fundamentar o racismo, a segregação ou genocídios, exemplificados neste século pela matança maciça de judeus na Alemanha, de armênios sob domínio da Turquia ou, bem mais recentemente, de grupos étnicos em Ruanda.
Se o território europeu é historicamente exemplar, por constituir um entrelaçamento de nações de dinamismo cultural antigo, há pontos de nacionalismo explosivos espalhados por boa parte do mundo. As fronteiras coloniais na África desrespeitaram as fronteiras das nações tribais, o que hoje inviabiliza um Estado como a Nigéria. O nacionalismo árabe se abate com ferocidade sobre minorias étnicas e culturais na Argélia. O quebra-cabeças pluri nacional da Indonésia  pode ruir de uma hora para outra.
Em resumo, o colapso do comunismo e o fim da Guerra Fria destamparam uma panela de pressão dentro da qual fermentavam formas de conflito que independiam da lógica das superpotências. Por causa do nacionalismo, há muita guerra e muito genocídio pela frente.
Boletim Mundo Ano 6 n° 5

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