Pesadelo: 500 mil soldados, fortemente armados e apoiados por tanques de guerra, ocupam as ruas, avenidas e prédios de uma das mais belas cidades do mundo. Perseguem, prendem e matam manifestantes, a imensa maioria composta por jovens pacíficos e desarmados. Em poucos dias, eles vencem: agora reina a paz na cidade. A paz dos cemitérios. Assim termina um dos mais importantes movimentos democráticos que eclodiram no Leste europeu, quando aquela região ainda pertencia à “esfera de influência” da antiga União Soviética. Se você ainda não adivinhou, a cidade é Praga, capital da antiga Tchecoslováquia. A data: 19 de agosto de 1968. Tanques e soldados pertenciam ao Pacto de Varsóvia, aliança militar comandada por Moscou. E o movimento de jovens, intelectuais e trabalhadores tinha como principal objetivo libertar o país da opressão nacional exercida pela União Soviética.
Naquela época, a União Soviética e os países-membros do Pacto de Varsóvia (além da Tchecoslováquia, Alemanha Oriental, Polônia, Hungria, Bulgária e Romênia) eram dirigidos por ditaduras de partido único, de orientação comunista. Assim, o chefe do Partido Comunista era o verdadeiro chefe de Estado, mesmo que, formalmente, houvesse no país um presidente ou primeiro-ministro. No caso da União Soviética, o chefe era Leonid Brejnev, um sujeito que, como todo bom ditador, combinava terror político com a mais desenfreada corrupção.
Ao mesmo tempo em que ordenava a prisão, perseguição, tortura e assassinato de opositores por supostas “atividades contra o socialismo”, Brejnev colecionava carros estrangeiros de luxo e cavalos puro-sangue. Sua filha, Galina, tinha predileção por diamantes.
Também como sempre acontece, quanto mais evidente a corrupção, maior a repressão.
A completa desmoralização do governo Brejnev foi, talvez, o maior estímulo para que, em 1968, eclodisse na Tchecoslováquia um movimento pela ruptura com o Pacto de Varsóvia.
Mas não era a primeira vez que Moscou enfrentava a rebeldia. Também a Hungria tentara abandonar a aliança, em 1956, quando a aliança militar, fundada em 14 de maio de 1955, mal completava o seu primeiro ano de existência.
Pressionado por intelectuais, estudantes e trabalhadores húngaros, o então dirigente comunista Imre Nagy chegou a declarar, formalmente, que a Hungria não mais era membro do Pacto de Varsóvia. Moscou enviou seus tanques, em novembro daquele ano. A revolta foi esmagada. Nagy foi executado como traidor, em 1958.
Os protestos reformistas ganharam as ruas de Praga em abril, na mesma época em que, por estranha coincidência, estudantes ampliavam suas manifestações em Paris. A revolta contra a opressão nacional, mais tarde conhecida como Primavera de Praga, forçou o líder comunista tchecoslovaco Alexander Dubcek a declarar a ruptura com Moscou, como antes fizera Nagy. Dubcek, que defendia um “socialismo com face humana”, iniciou um processo de reabilitação de todos os que haviam sido executados, presos ou perseguidos por ordem de Moscou.
Durante alguns meses, o “socialismo de face humana” mudou a vida do país, que foi tomado por uma espécie de intensa euforia cultural e política. Foi abolida a censura e asseguradas as liberdades democráticas.
A reação de Brejnev, como já sabemos, foi implacável. O ditador justificou sua ação invocando o princípio de que qualquer distúrbio em qualquer país-membro do Pacto de Varsóvia seria entendido como uma agressão à aliança em seu conjunto. Esse princípio, que se tornou conhecido como “doutrina Brejnev”, pretendia ser o equivalente ao artigo 5 da Otan, que previa uma ação coordenada contra agressoras externos. A diferença é que no caso de Praga não havia qualquer agressor externo.
Ou melhor, o único agressor era o próprio Brejnev. Como resultado da invasão de Praga, dezenas de pessoas morreram, Dubcek foi deposto e mais de 500 mil foram expulsos do Partido Comunista Tcheco, que retomou sua prática de total subserviência aos amos de Moscou.
O sonho de ver-se livre do Pacto de Varsóvia só aconteceria após a queda do Muro de Berlim (em 9 de novembro de 1989). Assim como a construção do muro, em 1961, fora uma demonstração de poder do regime soviético, sua queda mostrava que essa força havia se esgotado. Em 1989, em poucos meses, desabaram os regimes que integravam a aliança militar socialista. O processo foi pacífico, exceção feita à Romênia de Nicolai Ceaucescu, onde 10 mil pessoas morreram na guerra que se travou entre a população e setores das Forças Armadas, de um lado, e a Guarda Nacional do ditador, de outro. Na Tchecoslováquia, a Revolução de Veludo, dirigida pelo antigo dissidente Vaclav Havel, destronou a cúpula comunista, sem que qualquer tiro fosse disparado.
O fim do Pacto de Varsóvia liberou forças que implicaram profundas transformações das relações entre etnias e fronteiras. A própria Tchecoslováquia deixaria de existir, em janeiro de 1993, quando foram formalmente criadas a a República Tcheca (cuja capital é Praga) e a Eslováquia (tendo por capital Bratislava), destruindo uma fictícia unidade nacional de tchecos e eslovacos, só sustentada, durante quatro décadas após a Segunda Guerra, por força da repressão soviética. Morreu o país, persiste a memória, e com ela as indagações. A Primavera de Praga anunciou um sonho de democracia e liberdade. Será que ele já se fez cumprir?
Boletim Mundo Ano 6 n° 4
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