Cecília Nascimento
As folhas alaranjadas que formam as praças e ruas de Toronto revelam a chegada do outono e anunciam o toque de recolher para mais um longo inverno. Será tempo de a natureza adormecer, assim como a alma dos homens que, bravamente, escolheram esta terra para viver. São 30 milhões de guerreiros de todos os continentes lutando contra as temperaturas médias mais baixas do mundo. Ottawa bate Moscou quando se fala em clima - é a cidade mais fria do planeta.
“A estação Ártico do metrô fica a dez quadras daqui de casa”, brincava meu marido quando recebíamos visitas de amigos e parentes do Brasil. Era uma forma de lembrar que não tínhamos nenhuma barreira geográfica capaz de nos poupar dos fortes ventos vindos do norte. Na costa oeste do país, as Montanhas Rochosas barram massas de ar provenientes do Ártico, garantindo um clima suportável. Mas nas pradarias centrais e na costa leste, a natureza exige do homem paciência e perseverança até que as primeiras folhinhas da primavera comecem a brotar.
Quando pisei pela primeira vez nesta terra, em abril de 1996, a primeira imagem que vi foi a de uma dessas folhinhas tremulando sobre um retângulo listrado de vermelho e branco. Era a bandeira do país me dando as boas vindas no aeroporto de Toronto.
Muitos de meus companheiros de luta conheci na escola de inglês para imigrantes mantida pelo governo.
Meus colegas de classe vinham de lugares que, até então, eu só conhecia através do Atlas: Burundi, Etiópia, Albânia. Assim como eu, eles faziam parte dos cerca de 200 mil imigrantes que chegam ao Canadá todos os anos, atraídos por uma política de imigração organizada que visa povoar o país.
Muitos de meus colegas eram refugiados de guerra, gente forçada a deixar sua terra e adotar o Canadá como segunda pátria. Alguns traziam no rosto o alívio por ter deixado para trás fome e destruição.
Outros reconheciam o caminho próspero que o Canadá prometia - o país com melhor qualidade de vida do mundo, segundo ONU -, mas não escondiam o desejo de voltar para casa. Entre tantos sentimentos, havia uma sensação (física) compartilhada: “It's cold, it's too cold down here!”.
Com o passar dos meses, muita coisa que havia lido no Brasil sobre o Canadá começou a me parecer duvidoso. Meu maior espanto foi saber que o país não é, na prática, bilingüe de ponta a ponta. Apenas em Ottawa, a capital federal, e em Montreal, capital da província separatista do Quebec, as pessoas falam francês e inglês. Nas demais regiões, predomina totalmente o inglês. Em Ontário, economicamente a maior das dez províncias, pouca gente fala francês. Não foram poucas as vezes em que me perguntaram, surpresos se eu era “bilingual”, por causa do sotaque afrancesado que nós, brasileiros, revelamos quando falamos inglês. Eu respondia que minhas sobrancelhas grossas e a leve penugem acima do lábio superior não negavam minha origem portuguesa.
E, por falar em Portugal, fiquei ainda mais espantada ao saber que, dos 4 milhões de habitantes de Toronto, cerca de 250 mil falam português. A maioria vem do arquipélago dos Açores. A presença açoriana no Canadá criou um forte intercâmbio cultural entre os dois países, a ponto de gerar histórias engraçadas da influência do inglês sobre a língua portuguesa.
Nos Açores, usa-se hoje a palavra “knife” quando se faz referência a “faca”. Isso porque os filhos dos imigrantes açorianos que nasceram no Canadá começaram a achar engraçado a similaridade sonora entre “faca” e “fuck”. Com o passar dos anos, a palavra inglesa foi levada para o arquipélago pelos imigrantes que regressaram à terra natal e nunca mais se cortou nada com “faca” nos Açores.
Esta é uma das tantas histórias que levo na mala que hoje arrumo para voltar ao Brasil. No meu coração, levo a lição que nenhuma aula, aqui ou no Brasil, pôde me ensinar. Aprendi que, sejam quais forem as dificuldades - físicas, econômicas, culturais é possível fazer do lugar onde vivemos o nosso lugar, cuidando dele com amor e zelo. Ah, meu Deus, quantas vezes quis entender porque nós, brasileiros, ainda não aprendemos a cuidar da terra onde vivemos. Este cuidado e amor à terra foi mais a bela aula que tive nesse país tão distante. Obrigada, Canadá. Au revoir, Canada.
A GENTE SOMOS INUITS
São comuns as referências à existência de dois “Canadás”: o de maioria anglo-saxônica e o de minoria franco-canadense (majoritária na província de Quebec). Esses dois “Canadás” representam mais de 90% do efetivo demográfico, notavelmente concentrado numa faixa de mais ou menos 400 km de largura que acompanha a fronteira com os Estados Unidos. Mas há também uma minoria populacional autóctone espalhada por amplas áreas do vasto espaço canadense.
Há, de fato, um Canadá alóctone e outro autóctone. O primeiro é formado pelos descendentes dos colonizadores. O outro, por populações que descendem dos povos originais: índios, esquimós (conhecidos como inuits) e mestiços. Eles representam cerca de 3% a 5% (entre 800 mil e 1,2 milhão de pessoas) da população total e têm na memória uma longa história de exclusão e rejeição.
Os índios, mais de 90% dos autóctones, constituem cerca de 600 grupos e 50 nações. Pelas leis atuais, dividem-se nas categorias de “inscritos” e “não inscritos”. Os primeiros são admitidos ou admissíveis no regime das leis sobre os índios, o que lhes confere uma condição especial e certas vantagens, geograficamente circunscritas às reservas sob a tutela do Estado. Cerca de 80% deles vivem em mais de 2 mil reservas.
Os inuits perfazem cerca de 35 mil pessoas que habitam principalmente a parte setentrional da península do Labrador-Quebec, as desoladas ilhas do Ártico e também os territórios do Noroeste, onde são majoritários. Nos anos 90, os povos autóctones, especialmente os inuits, passaram a reivindicar maior autonomia ou mesmo o estabelecimento de regiões soberanas no interior do Canadá.
Boletim Mundo Ano 6 n° 6
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