Serge Goulart
No centro da Cidade do México está o Zócalo, a grande praça onde se conta a história, de antes dos aztecas até o eventual futuro comunista, no magnífico mural de Diego Rivera, nas paredes do Palácio Nacional. Há outros. No Palácio das Belas Artes, está Leon Trotsky, um dos líderes da Revolução Russa de 1917, com o estandarte “Proletários do mundo, uni-vos sob a bandeira da IVª Internacional”. Alguns perdem o fôlego. Pessoalmente, senti mais a falta de ar pela poluição e os 2.200 metros de altitude, nesta cidade que afunda lentamente num pântano.
Pertinho dali está o mais belo bar do país, o Sanborns (“Sun Borns”?!). Foi inaugurado em 1903, numa casa de azulejos azuis, para deleite da fina flor da sociedade. Um dia, Pancho Villa, vindo do norte, entrou a cavalo e bebeu tequila com as botas em cima da mesa, naquele elegante jardim feito à imagem do sul da Espanha. Depois, um mural de Orozco enfeitou ainda mais o colorido bar.
Plaquetas sobre “Temblores” e “Rutas de Evacuación” por todos os lados falam mais da situação política atual que de falhas geológicas, vulcões e cidades construídas sobre velhas cidades e lagos imensos.
Enquanto o chão tremelica sob meus pés e corro para o vão de uma porta, observo no Excelsior (“El Periódico de La Vida Nacional) a expulsão de dois agentes americanos. Uma sargentona loira, 1,90 metro, e um Rambo de terno (!), presos inocentemente passeando por Chiapas. O governo do PRI, setenta anos no poder, declara: “o governo mexicano é capaz de resolver o problema de Chiapas”. Gringos, go home!
Mas ninguém acredita que a militarização da região e os grupos de extermínio do PRI resolvam qualquer coisa. Já o PRD, pela boca de Cuauhtémoc Cárdenas, governador do Distrito Federal, invoca os “Cascos Azuis”, pedindo que a ONU envie tropas para o México. O subcomandante Marcos, cercado de ONGs financiadas pelas igrejas e pelo Banco Mundial, guarda um silêncio profundo. Talvez lhe interesse a “iugoslavização” do México, para impulsionar sua política atual de “municípios autônomos” na mais pobre região ao sul do rio Grande.
Abram o olho! Um “ratero”, dedos-leves, me levou a carteira no primeiro dia. Depois disso fiquei atento. Mas continuei sendo roubado todos os dias, em todos os lugares. No café nunca tinham troco, no táxi, onde “el marcador no funciona”, te pedem 50 pesos, você briga e “consegue” por 30, só para descobrir depois que o certo eram 12 pesos. O livro que você compra na calçada custa 30 pesos “porque hay que pagar a los guardias para trabajar aqui”.
Cansado, tomo um táxi e vou lendo as infindáveis notícias de prisão de políticos por corrupção.
(O pobre homem fura mais um sinal vermelho e é obrigado a parar. O guarda exige 20 pesos, o taxista briga, só quer dar 10 - “no vale mas que diez!”). Um tal Dr. Tornero é acusado de afanar a grana pública.
Outra manchete diz: “Todos os Salinas serão encarcerados”.
“Pelo menos estão prendendo os corruptos, não?!” O taxista me desmonta com um sorriso sábio que deve ter pertencido ao velho Don Juan, de Ixtlan: “Em três meses estão soltos. Em dois anos estão nomeados para outros cargos. Vivem disso”.
Talvez a quantidade de chili na comida tenha algo a ver com tudo isso, mas fico um pouco tonto bebendo a tequila “Revolución”, caminhando pela “Insurgientes”, em direção à “Niños Heróes”, passando na estação “Patriotismo” e “Obrera” para desembarcar na praça “Revolución”, onde compro uns livros usados sobre Zapata, antes de desembocar no “Paseo de La Reforma”. Reforma?!
Enganado pelos funcionários da Aero México, que me cobram uma taxa inexistente, parto com a sensação de que, quando a classe operária continuar o que Zapata começou, será preciso, como Hércules, “limpar as cavalariças de Áugias”. Vou voltar.
INSCRIÇÕES SOBRE O MÁRMORE
Revolução é uma palavra estranha, pois carrega significados contraditórios. Na sua origem, astronômica, remete ao eterno retorno: a órbita dos corpos celestes. Na sua importação para a política, remete à completa transformação: a transição abrupta para um novo regime. No México, a Revolução de Zapata e Villa, entre 1910 e 1917, foi um raio intenso, uma enorme turbulência, que desaguou mansamente no mais conservador dos regimes. De lá para cá, o Estado permanece sob o controle do Partido Revolucionário Institucional (PRI), descrevendo órbitas infindáveis em torno dos sagrados interesses da sua burocracia política e da sua elite econômica.
Os ícones da revolução (política) foram institucionalizados sob a forma de monumentos públicos e inscrições sobre o mármore. A mudança foi perenizada como memória. O congelamento do passado adapta-se bem ao movimento de eterno retorno que pontua, mas não muda, o presente.
O tempo desgasta até o mármore. O regime do PRI, descolorido, parece há anos tricotar o seu próprio esgotamento. A crise financeira e monetária de 1994, os levantes de Chiapas (que também se adornam com os ícones do passado), a corrupção desenfreada no Estado e na sociedade, tudo indica uma explosão próxima.
Mas é bom não esquecer: nessa fronteira entre as duas Américas, na margem sul do rio Grande, a astronomia prevalece há muito sobre a política. E o grande vizinho do norte vigia, atento, do seu observatório.
Boletim Mundo Ano 6 n° 5
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