Gilson Camargo
Depois da visita, que reposicionou Igreja na cena política da ilha, Fidel liberta presos e Washington reavalia embargo econômico
Ao desembarcar em Havana, a 21 de janeiro, João Paulo II criticou fortemente “o capitalismo selvagem, o neoliberalismo, o consumo desenfreado no mundo e o embargo econômico” decretado pelo governo norte-americano.
Mas também lançou uma mensagem sem precedentes em favor da unidade familiar, da liberdade de expressão e do respeito dos direitos humanos. Isso, em uma terra na qual o aborto e o divórcio são permitidos, a imprensa é controlada pelo Estado e onde, segundo a Anistia Internacional, haveria pelo menos 600 presos políticos.
Num clima de fortes emoções, durante a missa celebrada para cerca de meio milhão de pessoas na Praça da Revolução, João Paulo II condenou “o neoliberalismo capitalista” e as “forças cegas do mercado”. Numa referência à intervenção dos países ricos na economia do Terceiro Mundo, Karol Wojtyla concluiu que “se assiste ao enriquecimento exagerado de poucos à custa do empobrecimento crescente de muitos”.
Formada por cristãos ibéricos e negros africanos, Cuba é, como a Bahia, um terra de sincretismo religioso. Na Ilha, predomina a santería, que equivale ao candomblé dos brasileiros. No entanto, foi fundamental a participação de católicos na história cubana. Entre esses personagens, destacam-se o frade dominicano Bartolomé de las Casas (1474-1566), defensor dos índios, e o padre Félix Varela (1788-1853) que, segundo uma expressão recorrente, foi quem “ensinou os cubanos a pensar”. Fidel Castro e seu irmão Raúl estudaram em colégios católicos. O levante contra o ditador Fulgêncio Batista, entre 1956 e 1959, que culminou com a tomada do poder pelos revolucionários liderados por Castro, contou com o apoio tácito de parte da igreja católica, tendo até um capelão, o padre Guilherme Sardiñas, sido destacado pelos bispos para acompanhar os guerrilheiros de Sierra Maestra.
Caminhar pelas ruas de Havana, nesses tempos de súbito fervor religioso, é como entrar em um filme em preto e branco, montado quadro a quadro pela revolução, que recebeu pinceladas com as cores fosforescentes da economia de mercado. Fidel Castro, 72 anos, há 39 no poder, começou a implantar reformas que, segundo o próprio líder, “incluem inquestionáveis elementos do capitalismo”.
Os setores de telecomunicações, turismo e exploração de petróleo foram abertos a empresas estrangeiras, a partir de 1995. Para se manter no poder, o dirigente cubano adotou o “modelo chinês” de abertura de mercado, sem tocar na estrutura de poder totalitário.
O dólar circula livremente, ao lado do peso cubano. A presença cada vez mais intensa de turistas contrabalança golpes como a perda da safra de açúcar, no ano passado, e o comprometimento da lavoura de fumo, em janeiro, em virtude dos ciclones - as terríveis tormentas do inverno caribenho que assolam a Ilha durante os primeiros meses do ano.
Nem o turismo, nem as exportações, no entanto, superam o volume de divisas que ingressam no país através dos exilados.
Entraram no país, em 1996, nada menos que um bilhão de dólares, parte deles na bagagem dos milhares de exilados de Miami, que recebem autorização do regime castrista para visitar parentes na Ilha. O ingresso de dólares está mudando a fisionomia do país, pelo menos em grandes centros como a capital.
Entre máximas revolucionárias, versos do poeta e líder da independência José Martí, e as figuras barbudas de Fidel e Che Guevara, muros e fachadas exibem painéis de publicidade como em qualquer país do mundo capitalista. Desde tênis e jeans importados até eletrodomésticos, é possível comprar de tudo para quem tem dólares (muitos dólares). As Tiendas Panamericanas, supermercados que abastecem os cubanos com suas libretas (a caderneta que dá acesso à cota de alimentação e de produtos de higiene a que cada trabalhador tem direito), também vendem produtos mais caros, importados do México ou da Espanha.
Entre centros culturais e cinemas que ocupam prédios centenários, as Tiendas dividem espaços com uma revendedora Fiat. No final do ano passado, foi inaugurado o Shopping Center de Havana, onde uma roupa da Benetton equivale a dez vezes o salário da vendedora.
Não é raro encontrar profissionais qualificados que, nas horas de folga, buscam engordar um pouco a renda vendendo charutos - todo trabalhador que não faltar ao trabalho tem direito a duas caixas de “puros” por mês - ou ocupando-se da prestação de serviços para os estrangeiros.
Motoristas de táxi, guias e prostitutas são profissionais em franca ascensão. Elas estão mais perto do dólar dos visitantes. São pessoas como Ovídio Ruiz Diaz, que tenta vender por 15 dólares um casaco de peles. “Este vison estava em um armário da casa onde moro, que foi expropriada dos espanhóis pelo governo, na época da revolução. É uma raridade”, argumenta o cubano, que se diz tenor, poliglota e pintor. A renda média de um trabalhador oscila entre oito e 40 dólares.
O motorista de táxi pode ser um engenheiro que aumenta a renda com “La libre”, que é como os cubanos chamam o trabalho por fora. Giovani, um adolescente que diz ganhar cerca de 80 dólares por dia transportando turistas e jornalistas em seu triciclo - uma espécie de bicicleta transformada em riquixá - conta que tem permissão do governo para trabalhar, desde que mantenha em dia o pagamento do imposto mensal de 15 dólares.
Para a igreja católica, a visita do papa ajudou a tirar a religião do estreito limite das sacristias, depois de décadas de repressão e equívocos. Na outra ponta do acordo, a presença de João Paulo II em Cuba ajudou Fidel a sair do isolamento.
Por conta da visita, o mundo viu, ao vivo e, em alguns casos, sem edição, imagens de um país cercado de estigmas e atravessado por contradições.
O papa foi onde quis, disse o que lhe convinha na sua missão de arregimentar fiéis. Em suas duas aparições na Praça da Revolução, e nas três missas que rezou fora da capital, o papa arrastou consigo uma multidão que misturou ritmos caribenhos a hinos religiosos ou adaptou palavras de ordem como aquela da Unidade Popular no Chile de Salvador Allende: “Se ouve, se sente. O papa está presente”. Cuba não será a mesma depois disso.
Boletim Mundo Ano 6 n° 1
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