Newton Carlos
O terremoto com epicentro em Brasília pegou toda a área do Mercosul e adjacências. O “efeito samba”, ou o contágio do colapso cambial da moeda brasileira, teria precipitado a quebradeira no Equador.
Quanto ao processo de integração regional, estaria desestabilizado? A correria de diplomatas, burocratas, empresários, sindicatos e até presidentes mostraram um estado de emergência e o medo de descarrilhamentos coletivos. “É preciso mudar de rumo urgentemente”, reclamaram dirigentes de entidades de trabalhadores reunidos em Montevidéu por convocação da Coordenadoria de Centrais Sindicais do Cone Sul, cuja secretaria no momento é exercida pela Central Geral dos Trabalhadores (CGT) brasileira.
O quadro traçado era um painel de tragédias. Antes da crise brasileira, o Mercosul já apresentava índice médio de desemprego entre 10% e 15% e uma precária situação de oferta de trabalho que afetava a dois terços da mão-de-obra disponível.
A abrupta desvalorização cambial no Brasil “certamente provocará” desequilíbrio nos fluxos comerciais e mudanças nos sistemas produtivos e de emprego “com graves conseqüências para todo o Mercosul”. Estudo preparado pelos sindicatos filiados concluiu que os “impactos negativos” se amplificarão por força de políticas “centradas em abertura comercial unilateral, sem proteção diante do resto do mundo”.
Empresários em ação
Empresários se reuniram no Rio dispostos a buscar saídas “sem governos, por meio de diálogo entre empresários, que são mais ágeis e têm maior interesse em manter seus mercados”, segundo o senador Fernando Bezerra, presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI). O confronto com a União Industrial Argentina atestou a presença de interesses conflitivos, enquanto diplomatas e burocratas se recusavam, e continuam se recusando, a entrar no ritmo dos homens de negócios. “É preciso mais tempo para avaliar a nova realidade cambial”, disseram em nota oficial presidentes que compareceram ao Foro Empresarial Mercosul- União Européia.
Mas os pés no acelerador são comprimidos por uma sucessão de acontecimentos que pedem respostas rápidas, se é que elas existem. O governo do Uruguai lançou, em dois meses, dois pacotes de medidas destinadas a “melhorar a competitividade” das empresas nacionais, “seriamente afetadas pela desvalorização do real”. São previstos benefícios específicos para determinados setores, como agricultura, pecuária, indústria pesqueira e de manufaturados. O grande desastre anunciado, no entanto, teria como protagonista a indústria argentina, “vinculada de modo crucial e sem escapes ao Brasil, que compra um terço das exportações da Argentina cerca de oito bilhões de dólares por ano”, como registrou a Latin American Newsletter.
A relação de dependência é extensa.
Num intercâmbio crescente, o Plano Real garantiu, desde 1995, grandes saldos favoráveis à Argentina. Vinha para o Brasil a metade da produção automobilística do país vizinho, ou 90% do que é exportado. Do petróleo, já açoitado pelas quedas de preços nos mercados mundiais, 35%. De alimentos, 77%. E assim por diante. Todos esses produtos se tornaram mais caros no Brasil com a desvalorização.
Enquadradas na lei de “convertibilidade” de 1981, que moldou em pedra a paridade de um para um entre o peso e o dólar, as exportações argentinas não podem sonhar com uma salvadora desvalorização da moeda nacional. Enrique Mantilla, presidente da Câmara dos Exportadores, faz duas previsões: se o PIB verde amarelo, tragado pela recessão, contrair-se em 3% este ano, será de 15% a queda das exportações argentinas para o Brasil; se a contração for de 6%, queda de 30%.
O declínio será ainda maior com a esperada invasão de produtos brasileiros barateados em outros mercados, que compravam da Argentina. “O Brasil tem infecção e nós temos deficiência imunológica”, disse o deputado Rodolfo Terragno, um dos principais líderes da oposição a Menem.
Segundo ele, não há outra saída senão fazer com os dois países coordenem suas políticas macroeconômicas. “Existem grandes disparidades entre os sistemas de câmbio e de políticas monetárias e isso fatalmente se tornará incompatível com mercado comum”, garante. Morte anunciada do Mercosul? Não se trata apenas do desmoronamento da moeda brasileira, mas de uma parceria crucial, embora recente.
Choque de estratégias
Brasil e Argentina têm visões estratégicas diferentes em relação ao futuro da América do Sul e ao seu papel na nova configuração mundial. A contradição central envolve saber se o mundo, recém-saído da bipolaridade da guerra fria, se encaminha para um cenário dominado pela potência hegemônica ou para outro, baseado em blocos com certa autonomia. O primeiro cenário exige subordinar a integração regional à hegemonia dos Estados Unidos. Vai nessa direção a proposta do presidente Carlos Menem de dolarização das economias do continente, a começar pelo Mercosul ou, se for o caso, pela Argentina . Com isso, seria acelerada a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), de inspiração americana. Há previsões de que Menem, dado a gestos espetaculares, adotaria a dolarização por decreto.
No dia a dia dos argentinos, pouco mudaria. O dólar já funciona como moeda corrente. Do total de depósitos bancários, 56% são em dólares e sacá-los nos caixas eletrônicos é tão fácil como sacar pesos.
Resta saber o custo político de um ato extremo de cessão de soberania, num país de arraigada tradição nacionalista e para um presidente de extração peronista, que costuma dizer “Perón é a minha natureza”, quando se sabe que Perón teve brigas históricas com os Estados Unidos. “Não queremos ser o 51º Estado americano”, disseram populares indagados nas ruas, mas a memória inflacionária aterroriza os argentinos e ainda é arma nas mãos de Menem.
Já o Brasil, desde o início da aproximação com a Argentina, há mais de uma década, quer um Mercosul com autonomia suficiente para negociar com todos os blocos existentes, sobretudo com a UE. A política externa brasileira enxerga o bloco do Cone Sul como contrapeso indispensável para as pressões pró-Alca de Washington.
Visões estratégicas diferentes já criavam tensões subterrâneas entre Brasília e Buenos Aires e minavam o Mercosul. A desvalorização do real coloca as minas em estado de combustão.
TRÊS MOEDAS PARA O MUNDO GLOBALIZADO?
Um dos efeitos da globalização é a crença, justificada ou não, de que os governos perdem suas funções. Da Internet às empresas multinacionais, passando por fortes ondas de padronização de valores culturais e políticos, os Estados nacionais parecem cada vez menos capazes de exercer seus poderes sobre os cidadãos e a economia. Ora, a emissão de uma moeda própria sempre foi um dos sinais mais notórios do poder do Estado. Afinal, não é à toa que reis cunhavam moedas com suas efígies e até hoje as cédulas são assinadas pelas autoridades econômicas nacionais.
Contudo, a capacidade de emitir moeda está sendo abalada pela globalização.
Alguns analistas acreditam que há uma tendência irresistível para a substituição das moedas nacionais por algumas poucas “moedas macrorregionais”. No futuro próximo, o dólar cobriria as Américas, o Oriente Médio e grande parte da Ásia, o euro se estenderia da União Européia para toda a Europa, a Comunidade de Estados Independentes e a África enquanto o iene, em função das vastas reservas japonesas, se conservaria como moeda nacional.
Por trás dessa discussão está o velho problema da confiança.
Aliás, não é por acaso que a visão desse futuro com poucas moedas surja exatamente agora, quando na Ásia, na Europa oriental e na América Latina ocorrem tantas crises monetárias, desvalorizações cambiais e falências de instituições financeiras. É como se os governos desses países fossem de fato incapazes de cuidar de suas próprias moedas. A única solução definitiva para seus problemas seria o abandono dessa pretensão, aderindo a uma moeda regional cujas regras de emissão, administração e troca por outras moedas fossem de fato confiáveis.
Há implicações políticas óbvias nesse tipo de visão. Pois, se muitas vezes é verdade que os governos cuidam mal de suas moedas, economias e cidadãos, qual a garantia de que um governo estrangeiro seria capaz ou teria condições de fazê-lo melhor?
Objetivamente: nenhuma. As relações entre o dólar, o euro e o iene oscilaram tanto ou mais, nos últimos anos, que as variações cambiais de inúmeras moedas nacionais. As “super-moedas” dominam o comércio e as finanças mundiais, mas nem por isso são mais estáveis ou são administradas por governos necessariamente mais responsáveis e atentos às necessidades dos cidadãos que os governos do Brasil ou da Malásia.
Isso não significa que as moedas, tal como as conhecemos atualmente, sejam formas definitivas de regulação das relações econômicas. Pode até mesmo ocorrer uma redução no número de moedas, mas não há nisso nada de necessariamente virtuoso ou tecnicamente mais garantido. E podem também ocorrer mudanças em outras direções, como uma multiplicação de moedas. Nesse futuro alternativo, haveria hoje moedas de menos, não demais. A Internet é um bom exemplo de como surgem novas moedas eletrônicas e até mesmo formas tecnologicamente sofisticadas de compra e venda sem uso de moeda, ou seja, por meio de troca direta de mercadorias e serviços.
É uma volta ao escambo, a forma de interação mais primitiva da história humana, porém ocorrendo com base em tecnologias de informação.
Há também uma proliferação de centros de atividade financeira dos mais intensos, porém imunes a qualquer tipo de autoridade monetária, conhecidos como “offshore” (“paraísos fiscais”). Nesse tipo de organização (situada, por exemplo, no Uruguai ou nas Ilhas Cayman), nem mesmo os governos supostamente mais confiáveis e desenvolvidos conseguem colocar as mãos. Afinal, são centenas de bilhões cuja origem é o comércio de armas, tráfico de drogas, a evasão de impostos e outras atividades ilegais no resto do mundo.
Boletim Mundo Ano 7 n° 2
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