quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

PRIMEIRA DÉCADA PÓS-MURO CORROEU AS ESPERANÇAS DE 1989

O historiador Eric Hobsbawm não deixou por menos: o seu Era dos Extremos, publicado em 1994, trazia como subtítulo “o breve século XX (1914-1991)”. Desse modo, ao conhecido consenso historiográfico segundo o qual nosso século começou atrasado, no ano em que eclodia a Primeira Guerra Mundial, adicionava-se a conclusão de que ele terminou adiantado, no ano em que desaparecia a União Soviética.
A torrente de transformações dos “três anos mágicos” a queda do Muro de Berlim, em 1989, a reunificação alemã, em 1990, e a implosão do império vermelho, em 1991  era interpretada como a inauguração de uma nova era.
Aqueles anos foram um tempo de grandiosas esperanças. A supressão da Cortina de Ferro pareceu abrir caminho para a edificação de uma Europa livre de blocos estratégicos e militares. As visões do francês De Gaulle  a Europa unida “do Atlântico aos Urais”  e do russo Gorbachov – a “Casa Comum Européia” – estariam a um passo de transitar da esfera dos sonhos para a da geopolítica. A Rússia poderia, finalmente, integrar-se à “grande família do Ocidente”, retomando uma velha tradição celebrada nos salões da corte, em 1051, através do matrimônio de Ana de Kiev com Henrique da França e no campo de batalha, em 1814, através do cerco de Paris pela Santa Aliança anti-napoleônica.
FMI e nacionalismo na Rússia
O cenário europeu mudou radicalmente desde a queda do Muro de Berlim . Mas as esperanças dos “três anos mágicos” diluíram-se nas cruas realidades da política de poder.
O Ocidente perdeu a Rússia, nos sentidos econômico  e estratégico. No início de 1992, quando a administração reformista e liberal de Yegor Gaidar contava com vasta simpatia popular, o FMI adiou a concessão de créditos novos, concentrando-se apenas em garantir a rolagem da dívida externa russa. Nos anos seguintes, os reformistas foram sendo marginalizados, enquanto as máfias consolidavam seu controle sobre uma economia em ruínas.
Quando o FMI forneceu, enfim, um pacote de empréstimos de 10 bilhões de dólares, na primavera de 1996, seu único propósito consistia em garantir a reeleição de Boris Yeltsin.
Do ponto de vista estratégico, a decisão de expandir a Otan para a Europa centro-oriental  definida em meados da década e concretizada em 1998, com a admissão da Polônia, República Tcheca e Hungria  enterrou de uma vez as elites políticas pró-ocidentais na Rússia. O bombardeio da Iugoslávia, na primavera de 1999, provavelmente entrará para a história como marco de encerramento de um ciclo, no qual inflaram-se  e destruíram-se as esperanças de uma integração russa ao concerto do Ocidente.
Atualmente, sobre o pano de fundo do colapso econômico e de uma crise social tão profunda quanto a que desatou a Revolução de 1917, os nacionalistas, na direita e na esquerda do espectro político, reorganizam em bases imperiais as relações entre a Rússia e a CEI .
 Uma nova cicatriz geopolítica começa a aparecer na Europa, separando a esfera de influência de Moscou da maior parte do continente.
Euforia e pânico
A Guerra Fria não foi apenas o tempo do conflito Leste-Oeste, mas também o da cisão Norte-Sul. A descolonização afro-asiática, derivada em grande medida da corrosão do poder das velhas potências européias, evidenciou os fenômenos da pobreza e do subdesenvolvimento. Uma coalizão heterogênea de líderes nacionalistas  o comunista iugoslavo Tito, o pan-arabista egípcio Nasser, o neutralista indiano Nehru e o populista indonésio Sukarno  edificou o  movimento dos Países Não-Alinhados, cuja identidade cristalizava-se na oposição à dupla polaridade das superpotências.
Os geógrafos, sempre propensos a criar rótulos abrangentes, sintetizaram essas linhas de ruptura através das  expressões Primeiro Mundo, Segundo Mundo e Terceiro Mundo. O encerramento da Guerra Fria vitimou essas representações
geopolíticas e as ideologias que elas sustentavam.
Na última década, o socialismo e o nacionalismo econômico cederam lugar às estratégias de abertura dos mercados e atração de investimentos internacionais.
O vocabulário da globalização universalizou-se, expressando a hegemonia política das idéias econômicas liberais .
Os fluxos de investimentos externos percorreram um ciclo de euforia e colapso, entre 1991 e 1998. Na primeira fase desse ciclo, os investimentos externos financiaram o crescimento das economias do leste e sudeste da Ásia, América Latina e Europa centro-oriental. A China tornou-se o segundo maior receptor de investimentos internacionais, atrás apenas dos Estados Unidos. Poucos resistiram à tentação de profetizar a ascensão do “leão chinês” ao posto de Grande Timoneiro do Oriente . Em Kuala Lumpur, a capital da Malásia, o início da construção da Petronas Tower, projetada como o mais alto arranha-céu do mundo, simbolizou os sonhos efêmeros de grandeza daqueles anos.
Na segunda, a reversão dos fluxos golpeou devastadoramente os mercados financeiros e as moedas das chamadas “economias  emergentes”. O primeiro sinal de perigo soou no México, em 1994. Em 1997, os “Tigres asiáticos” sucumbiram na tormenta. Depois, a Rússia e o Brasil. Hoje, a “exuberância irracional” da Bolsa de Nova Iorque, na expressão de Alan Greenspan, o poderoso presidente do Fed, o Banco Central americano, faz com que alguns recordem os anos que precederam o crash de 1929.
A‘‘paz’’ de Bretton Woods
No pós-guerra, a economia capitalista internacional estruturou-se em torno do Sistema de Bretton Woods, que estabeleceu paridades fixas entre o dólar e o ouro.
Esse mecanismo garantiu um ambiente de estabilidade cambial, ao longo de quase três décadas. No início dos anos 70, as paridades fixas foram abandonadas, pois as reservas de ouro dos Estados Unidos não eram mais capazes de fornecer lastro para a imensa quantidade de dólares em circulação na economia mundial. O dólar, e todas as demais moedas, passaram a flutuar livremente.
A explosão dos fluxos de capitais, na década de 90, revelou a instabilidade extrema do sistema de livre flutuação cambial.
As crises no México, na Ásia, na Rússia e no Brasil foram precipitadas e agravadas por terríveis colapsos cambiais, que refletiram a contradição entre a globalização financeira e as moedas nacionais.
Na União Européia, a unificação monetária serviu como pára-raios contra a tempestade dos fluxos financeiros. No resto do mundo, em particular nos países subdesenvolvidos, não existem pára-raios. A tempestade continua e ameaça provocar o naufrágio do Mercosul.
“Nova ordem mundial” – essa expressão foi cunhada por George Bush, o presidente americano durante a queda do Muro de Berlim e a implosão do império vermelho. É uma profecia assentada sobre as percepções paralelas de um mundo ordenado e liderado pelos Estados Unidos.
Dez anos depois, sobram razões para dúvidas.
No portal do novo século, talvez seja melhor inscrever aquilo que disse um dia Sam Goldwyn, o antigo magnata do cinema: “Nunca profetize, especialmente sobre o futuro”.
Boletim Mundo Ano 7 n° 6

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