domingo, 20 de fevereiro de 2011

EM NOME DA “ORDEM”

O suposto “imperativo moral” da defesa de vidas inocentes esconde os interesses geopolíticos nos Bálcãs e no Mediterrâneo oriental.
“Agimos para proteger milhares de pessoas inocentes em Kosovo contra uma ofensiva militar crescente. Encerrar  essa tragédia é um imperativo moral.” Essas palavras foram dirigidas por Bill Clinton ao povo americano, enquanto mísseis riscavam o céu noturno de Pristina e outras cidades iugoslavas, no dia 24 março, inaugurando o mais vasto bombardeio aéreo na Europa desde 1945.
Procurando o caminho dos corações da opinião pública nacional, o presidente reciclava a mais histórica das justificativas utilizadas pela política externa americana. O “imperativo moral” foi o alicerce retórico da Doutrina Monroe e da Doutrina Truman, ecoando durante cada uma das guerras e intervenções externas conduzidas desde a Revolução Americana.
Por que as forças da Otan escolheram a tragédia de Kosovo para exercer o “imperativo moral”, esquecendo as carnificinas em Angola, no Congo, na Serra Leoa, na Colômbia e tantas outras “guerras escondidas”, até mais sangrentas que a dos Bálcãs? No seu pronunciamento de 24 de março, Clinton forneceu vagas pistas para resolver o mistério, ao explicar que a operação balcânica destinava-se “também” a defender o “interesse nacional”: “Agimos para prevenir uma guerra mais vasta, para desarmar um barril de pólvora no coração da Europa, que já explodiu duas vezes com resultados catastróficos”.
O barril de pólvora étnico-nacional que deflagrou a guerra européia de 1914 e re-emergiu durante a Segunda Guerra Mundial está de novo aceso desde 1991, quando a antiga Iugoslávia começou a se despedaçar. Depois da catástrofe na Bósnia, é a vez de Kosovo.
Nessa região de maioria étnica albanesa, a violenta repressão conduzida pelo líder sérvio Slobodan Milosevic contra os separatistas kosovares ameaça provocar “uma guerra mais vasta”. A Albânia, que já fornece armas aos separatistas através da fronteira, poderia ser engolfada para o centro do conflito. Então, seria a vez da Macedônia, onde se avoluma o descontentamento entre os albaneses étnicos, concentrados no oeste, junto às fronteiras de Kosovo e da Albânia.
Tropas de paz da ONU encontram-se há anos estacionadas na Macedônia, a fim de evitar uma guerra civil entre a maioria da população, formada por cristãos ortodoxos, e a minoria  muçulmana, de origem albanesa, que perfaz cerca de 440 mil habitantes ou 23% do total. Essa pequena república constitui, do ponto de vista de Washington, uma pedra intocável, crucial para todo o equilíbrio estratégico da Europa de sudeste. Uma explosão étnica nesse fragmento meridional da antiga Iugoslávia provocaria o envolvimento da Grécia e da Turquia.
Grécia e Turquia formam o “flanco sul” da Otan, bastiões da ordem estabelecida desde o pós-guerra no Mediterrâneo oriental. Mas esses estranhos “aliados” são rivais históricos que quase engajaram-se  em guerra pelo controle de Chipre, em 1974. A Grécia, cristã ortodoxa, percebe como ameaça a hipótese do surgimento de uma “Grande Albânia”, muçulmana, na sua fronteira norte. A Turquia, muçulmana, não poderia permanecer impassível diante de um massacre dos albaneses étnicos. No caso de Kosovo, o “imperativo moral” identifica-se com o “interesse nacional”. A operação militar da Otan poderia ser descrita como uma guerra de auto-defesa. O barril de pólvora balcânico, dessa vez, poderia explodir sobre os pilares da arquitetura ocidental no Mediterrâneo oriental.
LIMITES DO PODER
“A Otan parece pensar que pode lutar meia guerra”. O comentário do ex-chanceler britânico David Owen, logo após o início dos bombardeios aéreos contra a Iugoslávia, sublinhou a inconsistência estratégica reconhecida por todos os analistas militares: um conflito territorial não pode ser resolvido sem operações terrestres.
Na Segunda Guerra, os terríveis bombardeios nazistas contra Londres só serviram para fortalecer a coesão nacional britânica, assim como, depois, as incursões de esquadrilhas de aviões aliados devastaram a cidade alemã de Dresden mas pouco contribuíram para a derrota de Hitler. Na Guerra do Vietnã (1960-75), os B-52, “fortalezas voadoras” americanas, despejaram sem sucesso, semanas a fio, toneladas de bombas sobre Hanoi e Haiphong.
Na Guerra do Golfo de 1991, a ofensiva aérea foi só um prelúdio para a invasão de blindados. Em 1998, Sadam Hussein resistiu tranqüilamente aos bombardeios aéreos.
Os estrategistas da Otan conhecem bem essa lição de manual. Mesmo assim, Clinton descartou, desde o início, o emprego de forças terrestres em Kosovo. O ditador sérvio Slobodan Milosevic acreditou que o presidente americano falava a sério e preparou-se para resistir ao castigo, confiante na recompensa: a coesão dos sérvios em torno da sua liderança e a revitalização política do seu regime enfraquecido pelas guerras na Bósnia e no Kosovo.
Clinton excluiu as operações terrestres, em primeiro lugar, por temor à “síndrome do Vietnã”. O presidente sabe que o relutante apoio da opinião pública americana poderia se esvair diante do desembarque televisionado dos primeiros sacos pretos com cadáveres de soldados americanos.
Nos Estados Unidos, desde os anos 60, a sorte da guerra depende mais das oscilações nas pesquisas de opinião que da eficácia da tecnologia bélica futurista.
A aposta de Milosevic não se restringe aos limites de política interna na projeção externa do poder americano. O sérvio sabe que, atrás dos cuidados de Clinton, está a sombra da Rússia. Moscou reagiu aos bombardeios na Iugoslávia chamando de volta seu embaixador na Otan e anunciando o rompimento da sua cooperação com a aliança militar ocidental. Fontes do Kremlin ameaçaram recolocar armas nucleares na Belarus. O parlamento da Ucrânia pediu a renuclearização do país. Boris Yeltsin usou palavras duras, mas tratou logo de colocar água na fervura, pois a cambaleante economia russa depende de créditos e empréstimos de curto prazo do FMI.
A Rússia mantém laços profundos com a Sérvia. Desde o século XIX, essa aliança é um pilar do pan-eslavismo, o projeto de extensão da influência russa entre os povos eslavos. A ampliação da Otan, que incorporou a Polônia, a República Tcheca e a Hungria, é sentida na Rússia como a introdução de uma cunha ocidental no espaço histórico e cultural pan-eslavo.Em Moscou, a oposição nacionalista, que coliga comunistas e direitistas, agita-se como nunca. Analistas temem um golpe de Estado contra Yeltsin, talvez articulado pelo próprio premiê Ievgueni Primakov. Esse é o outro temor de Clinton. Ele sabe que o preço de uma invasão terrestre na Iugoslávia pode ser a ruptura do frágil equilíbrio político da Rússia pós-comunista. É por isso que a Otan age contra os manuais básicos de estratégia militar.
Boletim Mundo Ano 7 n° 2

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