A Comunidade de Estados Independentes (CEI) não é uma aliança militar, como a OTAN. Não é uma união econômica e monetária ou um mercado comum, como a União Européia. E sequer conseguiu concluir um tratado, sempre adiado, para a formação de uma zona de livre comércio. A primeira reunião de cúpula da CEI após a renúncia de Boris Yeltsin, no final de janeiro, como as 22 anteriores desde a sua fundação, não produziu mais que um punhado de solenes declarações de amizade.
O presidente russo Vladimir Putin anunciou novidades para a próxima cúpula, em abril. A CEI deve reconstruir e conservar “todas as melhores coisas” da antiga União Soviética, declarou enigmaticamente.
A fundação da CEI, em 1991, no exato momento da dissolução da União Soviética, sinalizou a intenção da Rússia de conservar a condição de grande potência.
No ponto mais baixo da sua trajetória descendente, a Rússia traçava uma fronteira estratégica no mapa da Eurásia, delimitando a sua esfera de influência exclusiva aquilo que veio a ser denominado o “Exterior Próximo”.
Uma forma à espera de um conteúdo: isso é a CEI. A longa e sombria “era Yeltsin” representou o intervalo de transição, durante o qual a Rússia nada podia fazer senão reafirmar sua decisão, amparada pelo arsenal nuclear, de conservar a esfera de influência do “Exterior Próximo”. O governo Putin é o início de uma nova etapa, na qual a prioridade consiste em construir o edifício do poder russo no “Exterior Próximo”, restabelecendo “todas as melhores coisas” do antigo Estado soviético.
O Estado é mais que a soberania do poder político sobre um território delimitado pelas fronteiras. A sua “alma geográfica” é constituída pela solidariedade econômica e pelos nexos culturais que integram as diferentes partes do território. Essas soldas, herdadas do passado, não se dissolvem senão lentamente. O Estado soviético moldou um conjunto territorial integrado, cujo arcabouço é formado por vias de circulação, núcleos urbanos e regiões industriais. As forças centrípetas emanadas desse arcabouço fazem as repúblicas da CEI orbitarem em torno da Rússia. Eis aí a plataforma para o projeto de Putin de reconstrução da Grande Rússia.
O núcleo eslavo da Europa Oriental
Ao lado da Rússia, a Ucrânia e a Belarus formam o núcleo eslavo da CEI. Essa comunidade histórica e cultural, que compartilha o cristianismo ortodoxo, não está atravessada por qualquer cicatriz étnica ou religiosa profunda. As repúblicas da Ucrânia e Belarus encontram-se integradas à região de Moscou por vias férreas e pelas hidrovias das bacias do Dnieper, Don e Volga. A pequena e pobre Moldova, cindida entre a maioria étnica romena e a minoria eslava, praticamente não conta.
No plano político, a Belarus percorreu meio caminho na sua trajetória rumo à velha casa russa. Há pouco, foi ratificado o Tratado de União entre ela e a Rússia e, em setembro, deve ser eleito um parlamento conjunto, com sede na cidade de Smolensk, entre Moscou e Minsk.
A pequena e pouco industrializada Belarus tem importância estratégica, pois encontra-se na faixa de fronteira entre a Rússia e a Polônia, que agora pertence à OTAN.
A Ucrânia completa essa faixa com países da OTAN. Ela conta com vasta população e significativos recursos naturais, abriga a região industrial do vale do Dnieper e o grande porto de Odessa, no mar Negro. O seu governo oscila entre a Rússia e a União Européia, segundo parceiro comercial e fonte dos ainda escassos investimentos externos. O Tratado de União com a Belarus é um modelo que Putin gostaria de aplicar à Ucrânia. É uma meta ambiciosa, mas compreensível, pois corresponderia à efetiva reconstrução da Grande Rússia.
A Ásia Central muçulmana
As cinco repúblicas muçulmanas da Ásia Central conectam o núcleo eslavo da CEI à grande potência emergente do oriente (China) e, pelo sul, à República Islâmica do Irã e ao caótico Afeganistão, controlado pelos fundamentalistas do Taleban. No seu interior, coexistem velhas regiões industriais soviéticas, zonas de agricultura irrigada em crise e áreas de baixa pluviosidade onde predomina o pastoreio transumante. O mar de Aral, vítima do uso indiscriminado de águas para irrigação, teve seu nível reduzido brutalmente em quatro décadas, testemunhando o maior desastre ambiental do planeta.
Mas as riquezas capazes de integrar a região à economia globalizada são os vastos campos de gás natural no deserto do Turcomenistão e de petróleo, no Cazaquistão, às margens do mar Cáspio. Em torno do transporte desses recursos até os portos marítimos trava-se uma batalha surda, que definirá o futuro geopolítico de toda a região.
Os dutos existentes atravessam o sul da Rússia, em busca de portos no mar Negro .
Mas empresas transnacionais petrolíferas têm projetos diferentes, destinados a evitar a travessia de território russo.
Alguns, prevêem rotas de dutos através da Geórgia ou do Irã, em busca de portos turcos no mar Mediterrâneo.
Outros, rotas através do Irã para portos no Golfo Pérsico.
Tais projetos têm o potencial de arrancar a Ásia Central, ou pelo menos suas áreas mais ricas, da esfera de influência russa.
Na Ásia Central, a fidelidade a Moscou é maior no Cazaquistão, que tem expressiva minoria étnica russa, no Quirguistão, junto à fronteira chinesa, e no pobre Tadjiquistão, na fronteira afegã, cujo governo enfrenta forte oposição islâmica. Mas é incerta no Uzbequistão e no Turcomenistão, que ocupa lugar crucial nos projetos de exploração do gás natural. A batalha dos dutos apenas começou. Nela, a sorte da Grande Rússia pode depender das inclinações do Cazaquistão.
A fronteira turbulenta da Transcaucásia
As montanhas da cordilheira do Cáucaso separam a Rússia das três pequenas repúblicas da Transcaucásia, que assinalam os limites entre a CEI e o Oriente Médio muçulmano. A Armênia, que teme a vizinhança turca e continua em estado de guerra latente com o Azerbaijão, é fiel à Rússia. A Geórgia não é. Seu governo opõe-se à operação militar de Moscou na Chechênia, república vizinha que faz parte da Federação Russa, procura aproximar-se da Turquia e gostaria de juntar-se à OTAN.
A Geórgia é uma forte dor de cabeça para Moscou, pois está na rota dos dutos projetados para conduzir gás e óleo do Turcomenistão e do Azerbaijão até o porto turco de Iskenderum. Outra dor de cabeça é o próprio Azerbaijão, país muçulmano que não perdoa a ajuda russa à Armênia e dispõe de ricos campos de petróleo. Para a Rússia, a guerra na Chechênia e a complexa política na Transcaucásia são partes do mesmo jogo, cujo prêmio consiste no controle sobre as riquezas em hidrocarbonetos da região que circunda o mar Cáspio. Putin terá muito trabalho.
Boletim Mundo Ano 8 n° 1
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