Como marco geopolítico, o significado desse evento dificilmente poderia ser exagerado: a admissão, no interior da Aliança Atlântica, da República Tcheca, da Hungria e da Polônia (...), seis semanas antes da conferência para celebrar o 50º aniversário da Otan. Ele significa que, na nova Europa, o destino não é mais determinado pela geografia. Ele assinala a recuperação de uma Europa de nações soberanas e auto-confiantes, que não mais são objeto das ambições de outros países e determinam sua própria sorte.
(Javier Solana, secretário-geral da Otan, em artigo escrito poucos dias antes da eclosão da guerra em Kosovo na revista The Economist, 13.mar.99, p. 23-28)
Essa é a nossa nova diplomacia das canhoneiras. São 400 aviões, 3 mil vôos, mil bombas, 100 alvos. É um pacote. Basta pegar na estante .” A avaliação é de William Arkin, especialista em combate aéreo e ex-oficial dos serviços de inteligência militar.
A Otan deflagrou a campanha aérea contra a Iugoslávia para arrancar do líder sérvio Slobodan Milosevic concessões diplomáticas desejadas pelo Ocidente, assim como, há mais de um século, navios de guerra americanos bombardearam portos japoneses para obrigar o imperador a abrir o país ao comércio internacional.
“Você é americano?”, perguntou a refugiada albanesa étnica Nejmije Kelmendi a um fotógrafo da Associated Press na fronteira entre Kosovo e a Albânia.
“Então, diga à Otan que Pec está ardendo em chamas e onde estão as tropas terrestres?”.
O diálogo aconteceu no fim de março, quando as colunas de refugiados e as cidades kosovares incendiadas revelavam a ineficiência do “pacote” aéreo. Uma semana depois, as contas de Arkin já tinham sido ultrapassadas. Mais aviões despejavam bombas sobre novos alvos, atingindo civis, incluindo refugiados.
A Otan nasceu em abril de 1949, como instrumento estratégico da Doutrina Truman. A aliança militar reunia, sob a liderança dos Estados Unidos, os Estados aliados da Europa Ocidental e o Canadá. O quinto artigo do tratado de fundação determinava que os países-membros entrariam automaticamente em guerra, no caso de agressão contra qualquer de seus integrantes.
A superpotência ocidental assumia o comando das forças aliadas, no caso de um confronto com a antiga União Soviética.
Ao longo da guerra fria, diante da superioridade bélica convencional soviética, a doutrina militar da Otan estruturou-se em torno da dissuasão nuclear. A ameaça latente de uma invasão soviética da Alemanha Ocidental era contrabalançada pelo compromisso americano com o engajamento de aviões e mísseis carregados com armas nucleares. O quinto artigo e a doutrina da dissuasão nuclear soldavam, estrategicamente, o território dos Estados Unidos aos territórios dos aliados europeus.
A Alemanha dividida, foco da bipartição da Europa em blocos geopolíticos antagônicos, foi o palco das crises que ritmaram a vida da Otan. A aliança surgiu no momento em que terminava o bloqueio de Berlim (1948-49), a primeira grave crise da guerra fria, com o recuo de Moscou e a criação dos dois Estados alemães. Na crise de 1962, que chegou perto do confronto nuclear, o compromisso da Otan com a defesa da Alemanha Ocidental desembocou na edificação do Muro de Berlim e na estabilização da fronteira inter-alemã. A queda do muro, em novembro de 1989, assinalou o fim da guerra fria e prenunciou a desintegração da URSS.
Reinventando a Otan
Desde a desintegração da URSS, em 1991, a Otan engajou-se na sua própria reinvenção. A dissolução tumultuada da antiga Iugoslávia forneceu, na Bósnia, o primeiro cenário de teste da “nova Otan”.
Mas, o impasse em Kosovo projeta um cone de sombra sobre todos os pressupostos estratégicos estabelecidos na última década.
Durante a guerra fria, geografia era destino. Os Estados da Europa Oriental, subordinados a Moscou, foram privados de soberania. As estruturas gêmeas do Pacto de Varsóvia e do Comecon emolduraram o bloco soviético e conferiram realidade à “cortina de ferro”. A “nova Otan” empenhou-se na supressão dessa fronteira, abrindo as suas portas para o ingresso da Polônia, da República Tcheca e da Hungria e sinalizando a futura admissão de outros candidatos . Ao mesmo tempo, dedicou-se a construir uma ponte para o diálogo com a Rússia. Em julho de 1997, foi assinada a Ata de Fundação Otan-Rússia, que cria um quadro consultivo entre a aliança e Moscou.
A “nova Otan” foi mais longe: decidiu separar o destino da geografia. Na prática, abandonou o princípio defensivo do quinto artigo, reorganizando-se para agir “fora da área”. Na Bósnia, em 1995, a novidade funcionou. Uma rápida campanha de bombardeio aéreo contra os sérvios bósnios abriu caminho para o fim da guerra e a assinatura dos Acordos de Dayton. A Otan assumia a função de “polícia da Europa”, enviando forças de manutenção da paz para o Estado bósnio, dividido nas entidades muçulmano-croata e sérvia.
Kosovo ameaça espalhar um incêndio étnico de proporções balcânicas. A decisão de atacar, tomada pela Aliança Atlântica em março, foi estimulada pelo precedente bósnio e pelo temor de que o conflito se alastre até envolver a Grécia e a Turquia, pilares do flanco sul da Otan.
Mas, sobretudo, ela derivou da nova doutrina estratégica: a “polícia da Europa” assumiu a missão de estabilizar os Bálcãs, libertando o destino das nações da prisão da geografia.
Dimensões de um fracasso
A lição da Bósnia não foi compreendida pela Otan. Em 1995, os bombardeios funcionaram apenas como prelúdio da ofensiva terrestre das tropas croatas, que infligiram pesadas derrotas aos sérvios bósnios. Em Kosovo, a decisão de excluir o uso de tropas terrestres derivou da “síndrome do Vietnã” e do medo de catapultar os nacionalistas russos ao poder .
Depois de mais de um mês de bombardeios aéreos, tudo indicava que essa decisão era uma receita para o fracasso.
Um fracasso plural. Enquanto a Otan travava a sua guerra aérea de alta tecnologia, no chão as forças sérvias esvaziaram Kosovo da maior parte da população de albaneses étnicos. No lugar de proteger os kosovares, objetivo explicitado por Clinton, a operação acelerou a maior tragédia humana na Europa desde 1945.
Logo no início dos bombardeios, a Rússia rompeu relações com a Otan, constatando a irrelevância da Ata de Fundação.
“Os Estados Unidos estão bombardeando a democracia russa, junto com a Iugoslávia”, sintetizou amargamente o deputado pró-ocidental Arkady Kramarev, enquanto um jornal de Moscou estampava uma manchete irônica: “O presidente Clinton é membro do Partido Comunista russo”. Comunistas e ultranacionalistas enxergam a campanha iugoslava da Otan como trampolim para uma vitória nas eleições parlamentares marcadas para dezembro.
A aventura balcânica da Aliança Atlântica pode deixar outra vítima, além dos refugiados de Kosovo e das relações ocidentais com Moscou - a doutrina estratégica de “polícia da Europa” que deveria ser consagrada no 50º aniversário da Otan. Na Europa desse fim de século, a lição iugoslava parece indicar que o destino continua, como antes, refém da geografia.
MOSCOU NÃO ACREDITA EM LÁGRIMAS
É o início da Terceira Guerra Mundial - dizem os analistas mais afoitos, ao especular sobre as eventuais conseqüências do ataque da Otan à Sérvia. E como aconteceria essa grande catástrofe? Resposta: com a entrada da Rússia na guerra. Os russos estariam dispostos a disparar seus mísseis contra a Otan, em defesa da ‘‘alma eslava’’ (no plano religioso e cultural), e para manter os Bálcãs, ou pelo menos a Sérvia, como sua ‘‘esfera de influência’’ (no plano mais comezinho das relações geopolíticas).
Certo: Moscou multiplicou sinais de irritação - das declarações explícitas do presidente Boris Ieltsin, de que jamais aceitaria o avanço de tropas terrestres da Otan, ao anúncio, às vezes confirmado e outras desmentido, de que a Rússia deslocaria navios de guerra para a região do conflito. Isso, passando pela proposta, aceita simbolicamente em abril, de criar uma nova república eslava, que seria integrada pela Rússia, Belarus e... a própria Sérvia.
Mas nada permite afirmar que Moscou esteja disposta a ir até as últimas conseqüências. No reino da política, quase sempre há uma distância abismal entre o discurso e o gesto. Haverá eleições parlamentares na Rússia, em dezembro, e o apelo nacionalista serve como luva a políticos demagogos, que adoram atribuir ao Outro a ‘‘culpa’’ pela crise. No momento em que a Rússia enfrenta uma catástrofe social, não iria nada mal um programa político concentrado no ódio ao estrangeiro. Daí a entrar de fato na guerra...
Mesmo descartado o Apocalipse, a ação da Otan anuviou os horizontes geopolíticos da Europa. Sintomaticamente, a Casa Branca transformou em discreto jantar o que seria uma grande festa em comemoração aos 50 anos da Otan. O que se decide na Sérvia é a projeção, na Europa, dos novos limites do equilíbrio de forças entre Moscou e Washington.
Vocação expansionista
A Rússia, desde o seu nascimento como Estado centralizado (a partir de Ivã o Terrível, o primeiro a usar o título de czar, em 1547), demonstra uma grande vocação expansionista. O próprio Ivã conquistou a região central do Kazan, em 1552; em 1556, foi a vez do Astrakan, quando então o território russo estendeu-se até as margens do rio Volga. Em 1558, Ivã começou uma guerra pelo domínio do Mar Báltico. Conquistar o acesso ao mar seria, sempre, uma ambição da Rússia, potência continental. Essa característica será fundamental para entender o interesse nos Bálcãs.
No Cáucaso e Ásia Central, a expansão do império czarista revestiu-se de um verniz religioso: após a queda de Constantinopla (1453) em poder do Império Otomano, a Rússia passou a se considerar ‘‘protetora’’ dos cristãos orientais (ortodoxos), ampliando sua área de interesse à região dominada ou assediada pelos turcos (Oriente Médio, África do Norte e Bálcãs). Pedro o Grande, em seu reinado (1682 - 1725) conquistou o Báltico, consolidando o seu poder nos Urais e iniciando a colonização da Sibéria. Nos séculos XVIII e XIX, a influência da Rússia ampliou-se, em detrimento do Império Otomano. Na Ásia, o poderio russo consolidou-se entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX: em 1858, a conquista da China à margem direita do rio Amur, completando a anexação da Sibéria; em 1866, Tashkent, Uzbequistão; em 1873, Turquestão; em 1885, Afeganistão; em 1902, o fim da construção da Ferrovia Transiberiana.
A Sérvia e os eslavos nos Bálcãs
A Sérvia ocupou (a ainda ocupa) um lugar muito particular nessa história. Habitada por uma maioria cristã ortodoxa (a religião dos czares russos), a Sérvia conquistou autonomia frente ao Império Otomano, em 1817, e buscou apoio na Rússia. Os russos tinham interesse em expulsar os turcos porque, para eles, os Bálcãs significavam acesso ao Mar Adriático. Mas o Império Austro-Húngaro temia a excessiva influência da Rússia, já que ela poderia promover a unificação de numerosas populações eslavas espalhadas pelos Bálcãs, com a eventual criação de uma Grande Sérvia, a unificação dos povos eslavos dos Bálcãs.
Inclusive (talvez, principalmente) por temer o poder eslavo nos Bálcãs, o Império Austro-Húngaro exigiu manter o controle sobre a Bósnia, gerando com isso a revolta de nacionalistas sérvios. Um deles, o estudante Gavrilo Prinzip, assassinou, em 28 de junho de 1914, o arquiduque Francisco Ferdinando, filho do imperador Austro-húngaro Francisco José. Como resultado, um mês após o atentado, em 28 de julho de 1914, o Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia e à Rússia. Começava a Primeira Guerra.
Os novos czares ‘‘vermelhos’’
Três anos após o início da guerra, a revolução comunista de 1917 prometia desmantelar o império colonial czarista. Mas o poder bochevique adotaria uma prática semelhante à dos czares, especialmente sob a ditadura de Josef Stalin (1927 - 53). Em 1922, agora rebatizada como União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), a Grande Mãe Rússia anexou uma vasta área, que compreendia 12 repúblicas, cerca de 22 milhões de km2 (quase três Brasis). O império seria ampliado, após a Segunda Guerra, com a anexação das repúblicas bálticas (Estônia, Letônia e Lituânia), e com a subordinação política do leste europeu ao Pacto de Varsóvia.
Coube a Mikhail Gorbatchov, conduzido ao poder em abril de 1985, iniciar um processo inédito de desmantelamento do império.
Contrariando a lógica de formação do poder imperial russo, Gorbatchov iniciou uma série de reformas com o objetivo de abolir a relação de opressão nacional que Moscou mantinha sobre a URSS e seus ‘‘satélites’’. Gorbatchov foi qualificado como ‘‘traidor’’ pelos opositores.
Não por acaso, o fracassado golpe de Estado desfechado contra ele aconteceu em 19 de agosto de 1991, às vésperas da assinatura de um Tratado da União que, pela primeira vez, colocaria a Rússia em pé de igualdade jurídica frente aos outros Estados que formavam a URSS.
Era mais do que os eslavófilos poderiam tolerar.
Uma nova ‘‘cortina de ferro’’?
Assim, é fácil entender que o desmantelamento da URSS criou um vazio de poder. Ali onde antes havia um império centralizado, passou a existir um amplo espectro de países politicamente voláteis. A Otan quis preencher este vazio, segundo seus próprios interesses.
Daí o fato de Washington ter decidido desfechar o ataque à Sérvia através da Otan e não via o Conselho de Segurança da ONU. A diferença central, entre um e outro, é a presença da Rússia.
A Otan já havia tentado descartar a presença russa na Europa, mediante o lançamento, em janeiro de 1994, do projeto Parceria pela Paz. O projeto previa manobras militares conjuntas entre a Otan e as Forças Armadas nacionais dos Estados associados. Todos os países do antigo bloco soviético na Europa, as repúblicas ex-soviéticas européias e - supremo cinismo! a própria Rússia foram convidadas a se associar.
Sob a aparência da democracia, colocava-se a seguinte questão: quem comandaria a aliança? Se a Rússia quisesse participar, deveria entregar os seus comandos aos Estados Unidos? Basta essa questão para demonstrar que o projeto era uma manobra estratégica.
Aquilo que Clinton não conseguiu em 1994, tenta agora, com o ataque à Sérvia: trata-se de estender o guarda-chuva da Otan sobre o continente europeu, levar a Otan à fronteira com a Rússia. Ao analisar a proposta da Parceria pela Paz, Gorbatchov notou que ... ‘‘a filiação de países do Leste e Centro da Europa à Otan levaria a uma nova cisão na Europa, a uma nova Cortina de Ferro. A Parceria pela Paz é inaceitável [...]. Ela significa levar gradualmente a Otan para as fronteiras da Rússia [...]. Na falta de um tratamento digno, a reação da Rússia será negativa. A humilhação dos russos criará hostilidade em todos os segmentos do país. Os demagogos esbravejarão sobre o “complô contra a Rússia”. Sua análise é mais atual do que nunca.
Boletim Mundo Ano 7 n° 3
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