Eu proponho a seguinte definição de nação: ela é uma comunidade política imaginada. É imaginada porque mesmo os integrantes da menor nação jamais irão conhecer ou encontrar a maior parte dos seus compatriotas, sequer ouvirão falar deles, porém na mente de cada um vive a imagem da sua comunhão (...) Ela é imaginada como uma comunidade porque, independente da desigualdade ou exploração reais que possam prevalecer no seu interior, a nação é sempre concebida como uma profunda, horizontal fraternidade. Em última análise é essa fraternidade que torna possível, para tantos milhões de pessoas nos últimos dois séculos, não tanto matar, mas voluntariamente morrer por tais representações imaginárias.
(Benedict Anderson, Imagined communities, Londres, Verso, 1996, p. 6-7)
No verão europeu de 1993, o jornalista brasileiro Dermi Azevedo, que viajava de trem pela Alemanha, puxou conversa com o senhor sentado ao lado.
Ao descobrir que ele era sérvio, Azevedo lamentou a guerra que consumia a Iugoslávia. “O problema - disse o velhinho - foi termos perdido a batalha de Kosovo para os turcos, em 1389. Se a vitória fosse nossa...”. Naquele ano distante, à frente de um exército de cem mil homens, o soberano turco Murad, muçulmano, surrou 60 mil soldados cristãos, em Polje .
A derrota selou o fim do reino sérvio e cravou uma estaca de rancor entre os habitantes da região. O rancor só aumentou nos anos seguintes, quando os turcos trouxeram colonos muçulmanos para habitar o Kosovo.
Depois da Primeira Guerra (1914-1918), a região foi integrada à nova Iugoslávia. A expulsão dos ocupantes nazistas, na Segunda Guerra (1939- 1945), com a vitória do exército comunista de Josip Tito, deu origem a uma federação de seis repúblicas, com direitos iguais, e duas regiões autônomas.
Uma dessas regiões era o Kosovo, que pertencia à República da Sérvia. Cerca de 90% da população local é de origem albanesa e muçulmana.
No fim dos anos 80, o líder iugoslavo Slobodan Milosevic, sérvio, percebeu que seus dias estavam contados, já que o comunismo agonizava no leste europeu. Milosevic lançou então uma campanha ultranacionalista, para entusiasmar os sérvios a maior etnia da antiga Iugoslávia - a destruir a federação e obter o controle do país. O principal alvo de Milosevic era o Kosovo, a região mais pobre da Iugoslávia.
Ele dizia que a população albanesa sugava subsídios preciosos, levando o país à ruína.
A ofensiva de Milosevic teve início em 1989, com um ato para lembrar os 600 anos da batalha de Polje. A autonomia do Kosovo foi eliminada, o idioma albanês proibido nas escolas e a população, submetida a intensa repressão A violência sérvia assustou as demais repúblicas, que se lançaram à independência. Milosevic enfrentou nos anos seguintes, sucessivamente, a Eslovênia, a Croácia e a Bósnia (onde muçulmanos de origem sérvia e croata conviviam há séculos com croatas católicos e sérvios ortodoxos).
A guerra na Bósnia, que começou em 1991, foi marcada pela “limpeza étnica”, a tentativa dos sérvios de expulsar - e, às vezes, exterminar – a população muçulmana. O conflito só terminou quando uma ameaça de intervenção maciça dos Estados Unidos levou à assinatura dos acordos de Dayton, em 1995. Em Dayton, criou-se uma federação bósnia composta por duas repúblicas. Uma, dividida entre muçulmanos e croatas. A outra, a República Srpska, sérvia, contando com o apoio de Milosevic . Os líderes dos dois milhões de albaneses étnicos do Kosovo aproveitaram a deixa para declarar a independência da região, embora abrissem mão de unificar-se com a vizinha Albânia, o que enfureceria Milosevic ainda mais.
As eleições na Bósnia, para a presidência da federação e para a liderança das duas repúblicas que a compõem, deveriam completar o percurso dos acordos de 1995, estabilizando o novo país. Mas, Milosevic está no comando de uma Iugoslávia economicamente destruída. E, para impedir o avanço da oposição interna, ele continua apostando no nacionalismo extremado . No início do ano, ele iniciou uma nova ofensiva militar contra o Kosovo. Sucedem-se combates entre sérvios e albaneses étnicos, com nítida vantagem para os primeiros, donos de um exército mais experiente e melhor equipado. Mais de 100 mil pessoas já foram expulsas de suas casas.
Os Estados Unidos e seus aliados, através da ONU, ameaçam intervir.
Tudo esbarra, porém, na oposição da Rússia, que mantém excelentes relações com a Iugoslávia de Milosevic.
O avanço das tropas de Milosevic enfraqueceu a posição do presidente eleito (mas não reconhecido internacionalmente) do Kosovo, Ibrahim Rugova. Ele sempre defendeu o diálogo, mas agora tem de conviver com o crescimento das atividades dos guerrilheiros do Exército de Libertação do Kosovo (ELK). Financiado principalmente pelos 500 mil kosovares que vivem fora da Iugoslávia, e contando com um discreto apoio da Turquia e dos países árabes, o ELK defende abertamente a aproximação com a Albânia.
O aquecimento da situação no Kosovo coloca outra vez os Bálcãs diante do fantasma da guerra total. Uma explosão no Kosovo poderia reacender os rancores na Albânia, além de lançar este país - o mais pobre da Europa em um conflito de grandes proporções contra a Iugoslávia. Mas o grande perigo está mesmo na Bósnia. Uma guerra total entre as tropas de Milosevic e os separatistas albaneses do Kosovo tornaria muito improvável a manutenção do frágil equilíbrio político acertado em Dayton. Como esperar que muçulmanos continuem a dividir a mesma federação com os sérvios, se bem ao lado, no Kosovo, eles estiverem se matando?
É bom refletir sobre uma frase do historiador inglês Eric Hobsbawm, dita no momento da assinatura do acordo de Dayton. “Essa não é uma boa paz. Mas qualquer paz é melhor do que a guerra”.
Boletim Mundo Ano 6 n° 5
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