Trinta milhões de argelinos são reféns da guerra entre um governo ilegítimo e extremistas muçulmanos, que já matou 70 mil pessoas
É abrir os jornais e constatar. Não passa uma semana sem que haja um massacre na Argélia. Cerca de 70 mil pessoas já foram mortas, quase sempre degoladas barbaramente, desde 1992. A média é de 40 mortes por dia. O discurso oficial põe a culpa nos extremistas muçulmanos do Grupo Islâmico Armado (GIA), hostil ao governo do presidente Liamine Zeroual. A verdade é que há no país uma guerra civil entre um governo ilegítimo e facções islâmicas que rejeitam qualquer diálogo - até com as principais forças políticas representativas da população muçulmana.
Os massacres são cometidos pelos dois lados. E os 30 milhões de argelinos são reféns de vinganças assassinas.
A guerra explodiu em 1992, depois que o governo anulou eleições legislativas vencidas pela Frente Islâmica de Salvação (FIS). Os vencedores prometiam abolir os partidos rivais e instalar um regime inspirado nas leis islâmicas. Mas houve um golpe de Estado “preventivo”, tolerado pela União Européia – principalmente a França. Temia-se que um Estado islâmico fundamentalista na Argélia, similar ao Irã dos aiatolás, contaminasse outros países do Maghreb, como o Marrocos e a Tunísia.
Isso poderia ferir interesses econômicos. A França traz da Argélia um terço do gás que consome.
Um gasoduto de 1.400 quilômetros, inaugurado em 1996, atravessa o deserto argelino levando combustível à Espanha e Portugal. O governo francês temia também que a militância islâmica alcançasse as suas fronteiras. São quase 800 mil argelinos e descendentes vivendo na França.
Marginalizada, a FIS lançou uma campanha terrorista contra alvos do governo. Seus militantes vinham das camadas mais pobres da população, os órfãos do modelo econômico. Formaram-se vários grupos guerrilheiros, entre eles o GIA. O grupo obteve o apoio do Irã e a adesão de centenas de antigos voluntários argelinos, que cerraram fileiras com a guerrilha muçulmana contra os soviéticos, na guerra do Afeganistão, nos anos 80. Em junho de 1992, a guerrilha islâmica matou o presidente Mohammed Boudiaf. Foi o sinal para o início de uma intensa campanha repressiva contra a maioria muçulmana. O governo armou mais de 150 mil civis, enquanto boa parte de seus 500 mil soldados dedicavam-se a proteger gasodutos, refinarias de petróleo e instalações de empresas estrangeiras no país. O serviço secreto argelino também tomou suas providências, infiltrando agentes no GIA e organizando massacres bárbaros, logo atribuídos aos “terroristas muçulmanos”.
O banho de sangue gerou sua própria lógica.
Um comando do GIA escolhe uma aldeia em que vivem meia dúzia de militares. No ataque, eles, suas famílias, vizinhos e amigos são degolados para “dar o exemplo”. Ou então o alvo é uma aldeia berbere , suspeita de colaborar com o governo. Dias depois, é a vez do exército ou dos esquadrões da morte paramilitares se vingarem. Em outubro de 1997, a FIS anunciou a suspensão unilateral da luta armada, depois de um ataque na região de Blida, aparentemente cometido pelo GIA, que matou 200 civis. Os dirigentes do GIA acusaram a Frente Islâmica de “trair a revolução”. O governo do presidente Zeroual esfregou as mãos de contentamento. Nada melhor do que a ameaça do “terror islâmico”, para justificar seu reinado.
LUTA ANTICOLONIAL
A luta pela independência da Argélia foi um dos capítulos mais sangrentos do processo de descolonização.
O comando do movimento era da Frente de Libertação Nacional (FLN), então muito influenciada pelo pan arabismo e pelo pan-africanismo, correntes que buscavam unificar o mundo árabe e a África, contra o domínio político e econômico do Ocidente.
Em 1956, a FLN iniciou a luta armada contra a ocupação francesa. Além do exército da metrópole, os nacionalistas enfrentavam também grupos paramilitares formados pelos pieds noirs (pés-negros), os colonos franceses. Só em 1962, quando mais de um milhão de pessoas haviam sido mortas, é que o governo da França reconheceu a independência da Argélia, que passou a ser presidida pelo líder da FLN, Ahmed Ben Bella.
Socialista, Ben Bella propunha um Estado laico, onde convivessem vários partidos políticos, e próximo ao bloco soviético. Mas sem vincular-se totalmente às diretrizes de Moscou. O novo regime chegou a receber brasileiros exilados pelo regime militar pós-1964, como o atual governador de Pernambuco, Miguel Arraes.
Em 1965, o ministro da Defesa, Houari Boumedienne (1925-78), liderou um golpe militar que imprimiu rumos mais autoritários ao Estado argelino. O regime ditatorial permitiu que a burocracia da FLN se beneficiasse dos gordos contratos de exploração de gás e petróleo, assinados com empresas estrangeiras. Apesar da amizade com Moscou, Boumedienne retomou contatos com a França. Hoje sabe-se que, até a morte do presidente, a França manteve, em pleno deserto do Saara argelino, um campo de testes de armas químicas.
O descontentamento popular passou a ser canalizado pelos religiosos, espalhados pelas mesquitas das casbahs (os bairros tradicionais) empobrecidas. A gritaria aumentou nos anos 80, quando sucessivos planos de ajuste econômico, para deter a inflação, aumentaram o desemprego. O governo reagia às greves e passeatas com tiros e cacetadas. A Frente Islâmica de Salvação foi criada em 1989 e, rapidamente, transformou-se no pólo de aglutinação anti-regime.
OS BERBERES
Um em cada cinco argelinos se diz tamazight, ou berbere. Trata-se de uma população não-árabe, possivelmente de origem ariana, que vive em enclaves no norte e no sul do país. Os colonizadores franceses trataram de aprofundar a divisão entre eles e a maioria árabe.
Em sua maioria, os berberes são muçulmanos sunitas (como o restante dos argelinos). Mas, desde a independência, os berberes vêm fornecendo os maiores contingentes para os partidos que lutam por um Estado laico, onde política e religião funcionem em esferas diferentes.
Até o golpe militar de 1992, eles mantinham um forte movimento que reivindicava o reconhecimento do tamazight como segundo idioma nacional.
Boletim Mundo Ano 6 n° 1
Nenhum comentário:
Postar um comentário