Newton Carlos
Catástrofe econômica e social atinge instituições políticas, cria vácuo de poder e reabre opções autoritárias
Em sua versão original, a agenda da visita do presidente Bill Clinton à Rússia, em agosto, previa o inicio de negociações de um Start III, sigla dos acordos de desarmamento envolvendo armas estratégicas, de alcance intercontinental. Embora o Start II continue mofando no parlamento russo, à espera de ratificação, os americanos o encaram como matéria de urgência. A Rússia mantém algo entre 10 e 20 mil ogivas atômicas, estocadas em condições duvidosas de segurança e submetidas às turbulências em curso.
Sinais de alarme se tornaram mais nervosos com a imagens de trabalhadores na indústria nuclear participando de protestos em Moscou. Muitos deles não recebem salários há dez meses, enquanto militares se entregam à agricultura de subsistência. Como administrar esse mega barril de pólvora, ou evitar que ele seja contrabandeado, com gente que sequer recebe salários?
Além disso, a Rússia declarou formalmente que ainda guarda 40 mil toneladas de armas químicas, cifra considerada aquém da realidade por entidades ambientalistas que buscam na Sibéria depósitos perdidos, fora dos registros do próprio governo.
Mas a crise financeira acabou ocupando a quase totalidade da agenda de Clinton. Em armamentismo, só foram firmados dois acordos de segunda linha, nenhum prevendo destruição de engenhos. Um dos mais respeitados especialistas em questões russas, o americano Stephen Cohen, diz que é o cúmulo da simplificação tratar a Rússia como vítima da “gripe asiática”. O que acontece é um “processo de autodestruição”, depois de oito anos de reformas. O PIB caiu 50%. Além de recursos naturais (petróleo e gás), o país já não produz praticamente nada. Grande parte dos bens de consumo é importada.
A dimensão dos estragos permite falar de algo sem precedentes, da “de-modernização” de um país.
Estão à vista os elementos de trágica “transição” para trás:
1. Desintegração da infra estrutura tecnológica, produtiva, científica e de transportes;
2. A pobreza atinge 75% da sociedade e pelo menos 15 milhões passam fome;
3. Expectativa de vida caindo para os 57 anos e doenças antes erradicadas regressando a condições epidêmicas;
4. Mesmo profissionais especializados tendo de cultivar a própria comida para sobreviver;
5. O consumo de carne baixou de 75 para 52 quilos per capita/ ano (no Ocidente rico, é de 114 quilos per capita).
Os 10% mais ricos, que sequer pagam impostos, ficam com 32% da renda nacional, enquanto os 10% mais pobres não vão além dos 2,4%. Numa definição sucinta, o jornalista inglês Larry Elliot escreveu que a Rússia “é vítima dos bolchevistas do livre-mercado, dos Lenins do laissez-faire, dos Stalins do monetarismo”. Eles já haviam passado pela Polônia e se lançaram na operação de “libertar a Rússia”. Os poloneses se entusiasmaram com o fato de serem libertados dos russos, tinham razões patrióticas para deixar-se envolver em embalos ocidentais. Mas os russos seriam libertados de quem? Deles próprios? Cohen pergunta se ainda há tempo para aplicar algo parecido com o New Deal, de Franklin Roosevelt, uma das armas americanas contra a Grande Depressão dos anos 30.
O caos já existe, a explosão é uma possibilidade, na medida em que um capitalismo selvagem, de máfias, permaneça em campo. A Rússia oligárquica, de “compadres”, muitos deles egressos da “nomenclatura” comunista, criou uma rede dominante de políticos, meios de comunicação e aparatos de segurança. São relacionados seis grupos: Alfa, Inkobank, Menatep, Most, Onexibank e Sbs-Agro. “Ladrões que dirigem bancos”, segundo a revista The Economist. Não só. Também petróleo, empresas químicas, farmacêuticas, de eletricidade, de construção civil, jornais, revistas, rádios, televisões. Magnata metido a fundo em lutas pelo poder, Boris Berezovsky foi nomeado por Yeltsin vice-chefe do Conselho de Segurança Nacional, tendo como cacife a intimidade da filha do presidente, um império empresarial de US$ 3 bilhões e controle de parte da mídia.
Há forte corrente no Partido Comunista que defende a introdução de algo parecido com a “economia socialista de mercado” da China. Admitem que a China tem enormes problemas sociais, mas argumentam que o crescimento econômico acabaria atenuando esses problemas. Já na Rússia, é o naufrágio social sem botes salva-vidas. Além disso, a China é tratada com respeito pelo resto do mundo. “Lideranças ocidentais chegam a Moscou propondo reformas que para os russos soam como coisas obscenas”, diz um neo comunista partidário do modelo chinês.
O general Alexander Lebed se fortalece como “reserva” nacionalista com os pés na Rússia oligárquica - é ligado ao Inkobank. Mas é, sobretudo, ele próprio e se declara, sem constrangimentos, semi-democrata em guerra contra a ‘‘invasão da cultura ocidental”. Quando chefe do Conselho de Segurança Nacional, recomendou o uso dos serviços secretos “em todos os campos” e uma estratégia diplomática privilegiando relações com a China. Rússia e China “poderão criar um sistema único e auto suficiente com enorme potencial de desenvolvimento e de mercado interno”.
Lebed é jovem, não bebe e representa a “parcela eficiente” das forças armadas. Tem experiência em política de nacionalidades, a que mais conta na Rússia, aglomerado com mais de 100 etnias não-russas. Atuou contra não-russos na Geórgia, Moldova e Báltico. Quer que Moscou garanta a proteção dos 25 milhões de russos espalhados pelas ex-repúblicas soviéticas.
Mesmo com Yelstin, a Rússia se distanciou diplomaticamente do Ocidente. Se vier uma ditadura, essa contraposição será implacável, avisam especialistas.
Nacionalistas e comunistas acusam o Ocidente de arruinar a economia russa e querer destroçar seu poderio militar. A manutenção desse poderio está na agenda do futuro.
Boletim Mundo Ano 6 n° 6
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