O homem é um bípede sem plumas, disse Platão. Sabedores disso, os seus adversários não perderam a chance: depenaram um galináceo e o apresentaram ao filósofo. A anedota coloca um problema de imensa complexidade: o que - ou quem – é o homem? Mais de 2000 anos se passaram sem que houvesse uma resposta definitiva. Para alguns, o homem é um ser racional e é essa qualidade que o diferencia dos animais; outros dizem que não existe ‘‘o’’ homem, mas sim muitos homens, condicionados pela época, cultura e classe social a que pertencem ou pertenceram; outros, ainda, acreditam que o homem é um ser que reflete a imagem de Deus: sua essência é a alma, algo de natureza transcendental, da ordem da fé, impossível de ser racionalmente explicado ou compreendido. Opaco à multiplicação quase infinita de definições, o nosso ‘‘bípede sem plumas’’ caminha, errático, em seu pequeno terreiro planetário.
A coisa toda se complica ainda mais quando a discussão não é ‘‘o’’ homem - esse desconhecido mas sim o seu estatuto no mundo da política e da cultura. Em 10 de dezembro de 1948, as Nações Unidas aprovaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma Carta contendo 30 artigos que garantem a todos o exercício das liberdades fundamentais (pensamento, organização, expressão, movimento), condena a tortura, o racismo, o arbítrio dos poderosos e postula o direito a uma vida digna e decente.
Ironia: os direitos universais eram assegurados justamente quando, pela primeira vez na história, o mundo já não era ‘‘o’’ mundo, mas sim dividido em dois pólos antagônicos e capazes de destruir várias vezes o planeta. Como entender a contradição?
Uma resposta é dada pelo pensador italiano Norberto Bobbio, no trecho que reproduzimos nesta página: ao longo da história, os direitos são historicamente construídos e determinados. ‘‘Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem - que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências.’’
O homem universal surge como ‘‘remédio’’ contra a ameaça do holocausto universal.
No mundo em fragmentos, a Declaração Universal criou a figura do indivíduo cujos direitos estão acima das tradições culturais, nacionais ou geopolíticas. Utopia? Equívoco? Você não encontrará aqui as respostas, mas sim uma proposta de reflexão.
Mesmo porque essas perguntas o acompanharão para o resto da vida. Elas são apenas outra forma de colocar a mais fundamental de todas as questões: a da liberdade.
‘‘O caminho contínuo, ainda que várias vezes interrompido, da concepção individualista da sociedade procede lentamente, indo do reconhecimento dos direitos do cidadão de cada Estado até o reconhecimento dos direitos do cidadão do mundo, cujo primeiro anúncio foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem; a partir do direito interno de cada Estado, através do direito entre os outros Estados, até o direito cosmopolita (...).
Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas (...) A liberdade religiosa é um efeito das guerras de religião; as liberdades civis, da luta dos parlamentos contra os soberanos absolutos; a liberdade política e as liberdades sociais, do nascimento, crescimento e amadurecimento do movimento dos trabalhadores assalariados, dos camponeses com pouca ou nenhuma terra, dos pobres que exigem dos poderes públicos não só o reconhecimento da liberdade pessoal e das liberdades negativas, mas também a proteção do trabalho contra o desemprego, os primeiros rudimentos de instrução contra o analfabetismo, depois a assistência para a invalidez e a velhice, todas elas carecimentos que os ricos proprietários podiam satisfazer por si mesmos.
Ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído. Mas já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo.Quais são os limites dessa possível (e cada vez mais certa no futuro) manipulação?
Mais uma prova, se isso ainda fosse necessário, de que os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens - ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitações do poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor. Às primeiras, correspondem os direitos de liberdade, ou um não agir do Estado; aos segundos, os direitos sociais, ou uma ação positiva do Estado. Embora as exigências de direitos possam estar dispostas cronologicamente em diversas fases ou gerações, suas espécies são sempre - com relação aos poderes constituídos - apenas duas: ou impedir os malefícios de tais poderes ou obter seus benefícios.’’
(A Era do Direito, Norberto Bobbio, Campus, RJ, 1992, pág. 7)
Boletim Mundo Ano 6 n° 6
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