Leonardo Sakamoto
Quando Dili surgiu por trás das nuvens, causou-me certo espanto. Algo de familiar, sensação de dejavù. Do alto, a cidade era um amontoado de tetos de zinco abraçados por morros à sua volta. Boréu, Rocinha, Alemão...
Não havia a Gávea e muito menos o Pepê, trocados por carrocinhas que vendiam sopa. O que não impedia, porém, que a bola estufasse redes de futebol na praia. Alguns navios de guerra descansavam na baía, essa tão porca quanto a Guanabara. E, de braços abertos, a estátua de Cristo redimia (em uma poética meio invertida) não a cidade, mas o pôr-do-sol do alto de uma montanha.
Estava impossível relaxar. Apesar das semelhanças, Dili não era Rio e Timor não é Brasil. Seis meses de planejamento, duas semanas de contatos em Portugal, dias de encontros em Jacarta, a capital da Indonésia. Tudo isso para culminar em uma grande dor de barriga no avião.
Que desculpa alguém que está prestes a ser deportado deve dar? Fiquei imaginando a cara dos colombianos, descobertos em situação irregular pela Imigração em São Paulo, tentando se explicar em castelhano para uma turma que mal fala o próprio português.
No saguão do aeroporto, o exército indonésio se voltou para os estrangeiros. Eram revistados, mostravam o passaporte, com certeza seriam seguidos. Se eu queria ser o único voyeur da história teria também que ser cara-de-pau.
Bapak, selamat pagi! O método de dar bom dia e cair fora funcionou bem. Dou graças a Deus minha mãe ter escolhido um japonês e não um finlandês para se casar.
Olhos puxados e pele queimada de sol funcionam como um bom disfarce entre indonésios e malaios.
Peguei um táxi e fui para o hotel que os exilados timorenses em Portugal tinham aconselhado como o mais seguro. Mesmo assim, descobri que o estabelecimento tinha comodidades que não constavam no anúncio: microfones escondidos, mini câmeras de TV, telefones grampeados.
E um pessoal de primeira: espiões de proprietários chineses a funcionários timorenses - prontos a te entregar às autoridades ao primeiro sinal de conspiração. Quando eu mudava de quarto, antes de abrir a boca para qualquer coisa (se você estivesse em um lugar em que não se podia confiar em ninguém acharia natural conversar consigo mesmo) revirava tudo de ponta cabeça em busca de algum dedo-duro eletrônico.
Oito da noite, toque de recolher. Fiquei no meu quarto esperando uma sirene gritar pela noite, mas o que ouvi foi só o silêncio. Um silêncio que doeu mais que uma bomba porque explodiu por dentro. Uma angústia toma conta de tudo, parecendo que o mundo acabou lá fora e que só resta você. Passado um tempo, a gente volta a si com o barulho dos caminhões do exército que rasgam a noite em uma ou outra patrulha. Um toque informal: ninguém disse nada para você, mas você sabe que não é para sair de casa.
De vez em quando eu rompia essa lei e fazia um passeio noturno. Jantava em um restaurante a dois ou três quilômetros do hotel e voltava caminhando. Pouquíssimas pessoas nas ruas. Mesmo para os que vêm de fora não é difícil saber onde estão os postos militares do exército.
Lâmpadas coloridas na fachada indicavam um local proibido.
Pareciam instalações de Natal, porém não piscavam, vigilantes. Fina ironia muçulmana.
Tinha vontade de conhecer o Cemitério de Santa Cruz, onde centenas de estudantes foram mortos em 1991.
Um membro da resistência timorense levou-me lá. “Olha aquela árvore. Ali meu amigo caiu depois de levar tiros pelas costas”. Vasos de flores tombados pelo chão, cruzes quebradas, capim alto. Tudo dava a impressão de que o tempo tinha sido suspenso em Santa Cruz. “Em cima deste túmulo uma garota foi violentada por um soldado”. De repente, parecia que tudo acontecera no dia anterior. “O exército ficou à espreita daquele lado, esperando que os estudantes chegassem”. Tirei apenas fotos em preto e branco nesse dia. Não me atrevi a colorir aquele lugar.
Partes de Dili haviam se tornado tão malditas que, acredito, nem os matan-dook, xamãs da ilha, poderiam purificá-los com suas mágicas, rezas e amuletos. Um desses lugares é o prédio onde eram realizados os interrogatórios do serviço secreto. Algo como o nosso Dops. Em nada se distinguia das demais construções, a não ser pelas histórias dos que conseguiram sair. O lixo resultante das sessões de tortura era encaminhado para valas comuns, cavadas como trincheiras nos arredores da cidade. Houve épocas em que tratores faziam o serviço de coveiros. Ruanda, Burundi, Timor, muda só o nome. Estive sobre o local provável de uma dessas valas, com mais de 300. Ironicamente, próximo de onde foi erguido um altar para receber João Paulo II em sua visita à ilha.
Assim como o avião do papa veio, foi embora, sumindo por entre as nuvens, deixando Dili para trás. Algum tempo depois, tomei o mesmo caminho e segui viagem para o Brasil. Indiferentes a toda essa movimentação, homens, mulheres e crianças mortos pela guerra esperam o dia em que possam realmente descansar em paz. E, entre os vivos, existe a esperança de que um dia a cidade possa ser, realmente, maravilhosa.
A “TERCEIRA MORTE” DO IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS
Portugal foi a primeira monarquia européia a estabelecer um império colonial, que chegou a ser o mais extenso do mundo no século XVI. A expansão colonial ocorreu sobre terras americanas, africanas, asiáticas e até ilhas da Oceania. As conquistas lusitanas envolveram implantações “continentais” - como Brasil, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau - e feitorias “puntuais” - como Goa, Damão e Diu (na Índia) ou Macau (na China). Além disso, Portugal tomou posse de arquipélagos e ilhas no Atlântico (Açores, Madeira, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe) e no Pacífico (parte oriental da ilha de Timor). As primeiras conquistas, Açores e Madeira, ocorreram durante o século XV, enquanto as últimas, Macau e Timor, verificaram-se na segunda metade do século XVI.
Lisboa iniciou garantindo o controle sobre a rota das Índias. O Brasil era então visto quase que como um estorvo. Logo, Portugal se tornou o maior centro mundial na revenda de especiarias. Mas, à medida que o império se expandia, paradoxalmente se enfraquecia. As despesas com a manutenção de um grande número de funcionários, a necessidade de proteção de inúmeros pontos espalhados pelo mundo e os gastos da corte contribuíram para tornar a monarquia mais vulnerável.
Os problemas se agravaram durante a União Ibérica (1580-1640), quando a coroa lusitana foi subordinada à espanhola. Sob o fogo da concorrência holandesa, Lisboa perdeu o controle sobre a rota das Índias. Essa foi a “primeira morte” do império e, também, uma lição sobre o valor do Brasil. A “segunda morte” viria, justamente, com a independência brasileira, em 1822. Antes dela, na segunda metade do século XVIII, os estrategistas portugueses sonharam com uma re-fundação imperial nos trópicos. Esse sonho adquiriu uma realidade tênue e passageira quando, confrontada com as tropas napoleônicas, a corte lusitana transferiu-se para o Rio.
O prolongado domínio de amplos territórios coloniais alimentou um anacrônico orgulho nacional e conferiu ao pequeno país uma influência externa desproporcional. O colonialismo funcionou como um dos alicerces políticos e ideológicos da longa ditadura de Antonio de Oliveira Salazar (1932-68), que prosseguiu e finalmente implodiu nas mãos do sucessor Marcelo Caetano (1968-74). A “terceira morte” do império colonial começou em 1961, quando tropas da Índia tomaram as possessões de Goa, Damão e Diu. Em seguida, foram deflagradas as guerrilhas anti-coloniais em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. O custo financeiro, humano e político do combate às guerrilhas africanas foi fator primordial para a eclosão da Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974 . Um ano depois da revolução, Lisboa renunciava às colônias africanas e ao Timor Leste, que foi imediatamente ocupado pela Indonésia.
Atualmente, do vasto império do século XVI, sobram apenas as ilhas da Madeira e Açores, fortemente integradas a Portugal. Macau passará à soberania chinesa no primeiro dia do ano 2000. O ritual de transmissão da soberania sobre o minúsculo enclave chinês, que assinalará o fim de um império de meio milênio, poderá coincidir com o surgimento de mais uma nação de língua portuguesa. O Timor Leste, ferido pela repressão implacável à guerrilha e desfigurado pela migração dirigida de indonésios, parece ter a possibilidade de recusar a autonomia que o novo governo de Jacarta oferece e seguir um perigoso atalho rumo à independência.
Boletim Mundo Ano 7 n° 2
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