sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

“CASO PINOCHET”: SOBERANIA EM QUESTÃO?

Newton Carlos
A prisão do ex-ditador Augusto Pinochet, em Londres, e o processo de extradição solicitado pelas autoridades judiciárias espanholas colocam a questão da soberania nacional em tempos de globalização.
Não é a primeira vez que isso acontece de modo formal, envolvendo a internacionalização de instrumentos jurídicos.
A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) preparou o texto de um tratado que deveria tornar-se a “Carta Magna da economia  global”, segundo Renato Ruggiero, presidente da Organização Mundial de Comércio (OMC), e “encorajar e proteger” 350 bilhões de dólares de investimentos que cruzam fronteiras anualmente. Mas o Multilateral Agreement on Investments (MAI), que dá às multinacionais o direito de processar governos nacionais que “atentem” contra seus interesses, submergiu em banho Maria  depois de uma temporada de discussões azedas e brios ofendidos. De que adianta eleger governos e parlamentos se as leis produzidas por eles perdem vigência diante de poder superior?
No caso Pinochet, no entanto, a argumentação que mais comove vai em sentido contrário, favorece a internacionalização.
“O que sucede com o ex-ditador chileno quebra uma cadeia de impunidades, é aviso poderoso aos que violam direitos humanos”, diz Helen Bamber, da Medical Foundation for the Care of Victims of Torture.
A Anistia Internacional enxerga na internacionalização de leis contra genocídio, tortura e terrorismo - crimes contra a humanidade - o único jeito de punir Pinochet e os demais do gênero. Mas, a rigor, as críticas ao MAI, num contexto de soberania nacional versus globalização, não se aplicariam também para o caso Pinochet?
Até o jornal Guardian, de Londres, que tem Pinochet na conta de monstro merecedor dos piores castigos, pediu cuidado no trato de instrumento jurídico tão delicado, o da extradição, cuja integridade é essencial à proteção de perseguidos políticos. Agora mesmo, europeus estão às voltas com a vontade do governo repressivo da Turquia de botar as mãos em dirigente curdo exilado.
Em 1978, a Espanha suspendeu por sete anos a vigência de tratado de extradição com a Grã-Bretanha, velho de um século, por achar que Londres dificultava a entrega de fugitivos espanhóis. Agora se fala na vaga promessa de campanha do Partido Trabalhista britânico de colocar em prática uma “diplomacia ética”, capaz de tornar o mundo menos seguro para tiranos, e que Pinochet seria o seu primeiro embalo. Curioso é que o grande aliado estratégico da Grã-Bretanha, os Estados Unidos,  se movimentam em sentido contrário.
Dezenas de organizações de defesa dos direitos humanos, ambientalistas e pacifistas se postaram diante do Congresso exigindo de Clinton a “imediata reabertura das investigações sobre a responsabilidade de Pinochet no assassinato em Washington do ex-ministro chileno Orlando Letelier e sua secretária americana Ronni Moffitt”. Agentes do FBI que foram ao encontro dos autores do atentado afirmaram em juízo que não havia dúvida sobre a culpabilidade do próprio Pinochet. Não houve reabertura nenhuma das investigações e, em Londres, diplomatas americanos fizeram pressão contra a extradição.
Pinochet teve a companhia de 400 assessores policiais militares dos Estados Unidos em suas atrocidades e Washington, com medo de também acabar sentada no banco dos réus, não encontrou nenhuma razão que a constrangesse a aceitar a “diplomacia ética” de Tony Blair. Mosaico político, portanto, no qual cabe um mundo de interpretações. O modelo mais à mão, de um ponto de vista jurídico desfavorável a Pinochet, seria o Tribunal de Nuremberg, que julgou os criminosos de guerra nazistas.
Allied trials of war criminals, diz a Enciclopédia Britânica - um tribunal dos vencedores.
O Tribunal de Nuremberg  jamais iria em cima de Harry, the bomber, o cérebro dos bombardeios maciços à Alemanha no final da guerra, executados contra populações civis com o único objetivo de aterrorizar. Cem mil mortos numa única noite em Dresden, atingida por avalanche de bombas incendiárias. Harry tem estátua em Londres.
Tribunais com tarefa específica e tempo de vida limitado foram criados pela ONU para julgar acusados de crimes contra a humanidade, na Bósnia e em Runda.
Mas a resistência em abrir mão da soberania nacional nesse terreno mal definido ficou clara na montagem relutante e ainda incompleta de um Tribunal Penal Internacional permanente. Os Estados Unidos, com tropas espalhadas pelo mundo, se recusam a admitir que seus soldados sejam entregues a tribunais “estrangeiros”.
Há uma convenção internacional sobre tortura, expressão da vontade de que essa praga seja banida do planeta. Mas o que dá fôlego aos argumentos de que é preciso internacionalizar a justiça, no caso Pinochet, é a aparente inviolabilidade do pacto que “regulamentou” a transição da ditadura à democracia.
Como as Forças Armadas do Chile conservaram privilégios e poderes excepcionais, os tribunais chilenos não têm força suficiente para colocar Pinochet no banco dos réus. Há três queixas-crimes e 14 denúncias contra o ex-ditador e todas deságuam, obrigatoriamente, em cortes militares. O Chile é uma nação soberana?
Boletim Mundo Ano 7 n° 1

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