terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

RADIOGRAFIA DO SISTEMA CARCERÁRIO MOSTRA CRIMES DO ESTADO

Carlos Alberto Idoeta
Em 10 de dezembro de 1998, cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 400 presos da cadeia pública de Osasco (SP) foram arrastados de suas celas sob o pretexto de uma revista. Provariam oito horas de truculência e humilhação, incluído um “corredor polonês” na presença de um juiz. Durante o espancamento, os policiais gritavam: “Hoje é dia dos direitos humanos, e o direito de preso é esse”. Todos  temos direitos, mesmo atrás das grades. As leis brasileiras e internacionais estabelecem padrões e garantias detalhados para o tratamento de um prisioneiro: nenhum criminoso ou suspeito sob a custódia do Estado pode ser torturado ou humilhado, ou mantido em celas sujas e inseguras, ou privado de alimentação e assistência médica.
Em junho passado, a Anistia Internacional divulgou um relatório sobre a crise do sistema carcerário brasileiro.
Ele é fruto de quase dois anos de pesquisa e de visitas a 33 instituições penais em dez estados.
No dia 13 de outubro de 1997, Otávio dos Santos  Filho morreu num xadrez de delegacia de São Paulo. Segundo o testemunho de 19 outros presos, ele foi espancado por policiais e carcereiros que batiam sua cabeça contra as grades e a parede da cela. O corpo foi liberado em caixão fechado, mas a família descobriu numerosas lesões.
A autópsia indicou a causa da morte como septicemia (infecção generalizada). Todo ano ocorrem dezenas de casos de mortes sob custódia, em conseqüência da violência de policias e agentes penitenciários, da privação de assistência médica e da negligência das autoridades em prevenir a violência entre os detentos. A impunidade é quase plena.
Os presos raramente têm a quem recorrer para denunciar as violações, as inspeções são poucas e o risco de represálias é alto. O Instituto Médico Legal (IML) tem vínculo estrutural com o aparato de segurança pública.
É comum o envio de destacamentos policiais especializados para lidar com motins e tentativas de fuga, que em alguns casos recorrem ao uso excessivo de força.
Exemplo célebre foi o massacre do Carandiru, até hoje impune, onde 111 presos foram executados, em outubro de 1992. A Polícia Civil recorre habitualmente à tortura.
O sistema prisional tem condições de acomodar 74 mil pessoas mas são cerca de 170 mil os internos nas instituições penais e delegacias superlotadas, muitas vezes em celas escuras, sem ventilação e infestadas de insetos e roedores.
Os níveis de infecção pelo vírus da AIDS chegam a 20% em algumas áreas, mas não há um programa de teste voluntário.
A tuberculose está disseminada. Alguns médicos de instituições penais afrontam princípios internacionalmente aceitos e a própria  ética da sua profissão.
A Constituição de 1988 diz que todos os estados  devem proporcionar assistência jurídica aos presos sem recursos para contratar um advogado particular. A maioria dos estados cumpre com enorme deficiência essa exigência.
Os internos esperam meses, ou anos, pela designação de um advogado. Cerca de 90% dos presos brasileiros são analfabetos ou semi-analfabetos, cerca de 80% são pobres.
As mulheres representam 5% da população carcerária. São também vítimas de tortura e maus tratos por policiais e guardas, da superlotação e da carência de assistência médica, de privacidade e de instalações sanitárias.
Os jovens condenados ou sob suspeita de crime sofrem as mesmas violações. Muitas vezes, seus pais não são informados sobre seu paradeiro. A grande maioria dos adolescentes infratores está detida por crimes contra a propriedade e menos de 10% cometeram crimes violentos graves, como homicídio e estupro. Mais de 96% deles não têm o primário completo.
Constatando o abismo entre a retórica e a prática oficial, as pesquisas da Anistia ao mesmo tempo identificaram exemplos de boas práticas. O estado de São Paulo adotou em 1996 uma estratégia modelar para lidar com motins, tentativas de fuga e tomadas de reféns. O projeto Déficit Zero do Ministério da Justiça criará 16.440 vagas em 52 novas instituições. Numa penitenciária feminina de Porto Alegre, as celas são limpas e amplas, uma creche possibilita às crianças a companhia da mãe até os cinco anos de idade, e empresas privadas oferecem trabalho às presas interessadas em um salário e na remissão da pena.
Algumas prisões menores demonstram que é possível punir o crime e reabilitar o criminoso: a Plácido de Souza, em Caruaru (PE), a de Itaúna (MG), o Patronato Lima Drummond, em Porto Alegre e a cadeia pública de Bragança Paulista (SP). Uma lei de novembro de 1998 oferece aos juízes uma ampla gama de penas alternativas à privação de liberdade. Calcula-se o custo médio de encarceramento de um delinqüente em 350 dólares mensais e em 53 dólares o de aplicação de penas alternativas.
O índice de reincidência seria de 48% e de 13%, respectivamente.
A Anistia apresenta às autoridades um elenco de 50 recomendações, várias implicando custos mínimos. Incluem a prevenção de tortura e maus tratos, a investigação imparcial de mortes sob custódia, a publicação das conclusões, o afastamento dos funcionários envolvidos enquanto se aguarda o inquérito, a independência dos IMLs, a separação completa entre os responsáveis por detenção e os responsáveis por interrogatório, a eliminação das desumanas “celas de castigo”, a submissão de relatórios periódicos aos órgãos internacionais de monitoração das convenções contra a tortura, contra a discriminação de mulheres e sobre os direitos da criança. 
Boletim Mundo Ano 7 n° 4

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