Carlos Alberto Idoeta
Em 10 de dezembro de 1998, cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 400 presos da cadeia pública de Osasco (SP) foram arrastados de suas celas sob o pretexto de uma revista. Provariam oito horas de truculência e humilhação, incluído um “corredor polonês” na presença de um juiz. Durante o espancamento, os policiais gritavam: “Hoje é dia dos direitos humanos, e o direito de preso é esse”. Todos temos direitos, mesmo atrás das grades. As leis brasileiras e internacionais estabelecem padrões e garantias detalhados para o tratamento de um prisioneiro: nenhum criminoso ou suspeito sob a custódia do Estado pode ser torturado ou humilhado, ou mantido em celas sujas e inseguras, ou privado de alimentação e assistência médica.
Em junho passado, a Anistia Internacional divulgou um relatório sobre a crise do sistema carcerário brasileiro.
Ele é fruto de quase dois anos de pesquisa e de visitas a 33 instituições penais em dez estados.
No dia 13 de outubro de 1997, Otávio dos Santos Filho morreu num xadrez de delegacia de São Paulo. Segundo o testemunho de 19 outros presos, ele foi espancado por policiais e carcereiros que batiam sua cabeça contra as grades e a parede da cela. O corpo foi liberado em caixão fechado, mas a família descobriu numerosas lesões.
A autópsia indicou a causa da morte como septicemia (infecção generalizada). Todo ano ocorrem dezenas de casos de mortes sob custódia, em conseqüência da violência de policias e agentes penitenciários, da privação de assistência médica e da negligência das autoridades em prevenir a violência entre os detentos. A impunidade é quase plena.
Os presos raramente têm a quem recorrer para denunciar as violações, as inspeções são poucas e o risco de represálias é alto. O Instituto Médico Legal (IML) tem vínculo estrutural com o aparato de segurança pública.
É comum o envio de destacamentos policiais especializados para lidar com motins e tentativas de fuga, que em alguns casos recorrem ao uso excessivo de força.
Exemplo célebre foi o massacre do Carandiru, até hoje impune, onde 111 presos foram executados, em outubro de 1992. A Polícia Civil recorre habitualmente à tortura.
O sistema prisional tem condições de acomodar 74 mil pessoas mas são cerca de 170 mil os internos nas instituições penais e delegacias superlotadas, muitas vezes em celas escuras, sem ventilação e infestadas de insetos e roedores.
Os níveis de infecção pelo vírus da AIDS chegam a 20% em algumas áreas, mas não há um programa de teste voluntário.
A tuberculose está disseminada. Alguns médicos de instituições penais afrontam princípios internacionalmente aceitos e a própria ética da sua profissão.
A Constituição de 1988 diz que todos os estados devem proporcionar assistência jurídica aos presos sem recursos para contratar um advogado particular. A maioria dos estados cumpre com enorme deficiência essa exigência.
Os internos esperam meses, ou anos, pela designação de um advogado. Cerca de 90% dos presos brasileiros são analfabetos ou semi-analfabetos, cerca de 80% são pobres.
As mulheres representam 5% da população carcerária. São também vítimas de tortura e maus tratos por policiais e guardas, da superlotação e da carência de assistência médica, de privacidade e de instalações sanitárias.
Os jovens condenados ou sob suspeita de crime sofrem as mesmas violações. Muitas vezes, seus pais não são informados sobre seu paradeiro. A grande maioria dos adolescentes infratores está detida por crimes contra a propriedade e menos de 10% cometeram crimes violentos graves, como homicídio e estupro. Mais de 96% deles não têm o primário completo.
Constatando o abismo entre a retórica e a prática oficial, as pesquisas da Anistia ao mesmo tempo identificaram exemplos de boas práticas. O estado de São Paulo adotou em 1996 uma estratégia modelar para lidar com motins, tentativas de fuga e tomadas de reféns. O projeto Déficit Zero do Ministério da Justiça criará 16.440 vagas em 52 novas instituições. Numa penitenciária feminina de Porto Alegre, as celas são limpas e amplas, uma creche possibilita às crianças a companhia da mãe até os cinco anos de idade, e empresas privadas oferecem trabalho às presas interessadas em um salário e na remissão da pena.
Algumas prisões menores demonstram que é possível punir o crime e reabilitar o criminoso: a Plácido de Souza, em Caruaru (PE), a de Itaúna (MG), o Patronato Lima Drummond, em Porto Alegre e a cadeia pública de Bragança Paulista (SP). Uma lei de novembro de 1998 oferece aos juízes uma ampla gama de penas alternativas à privação de liberdade. Calcula-se o custo médio de encarceramento de um delinqüente em 350 dólares mensais e em 53 dólares o de aplicação de penas alternativas.
O índice de reincidência seria de 48% e de 13%, respectivamente.
A Anistia apresenta às autoridades um elenco de 50 recomendações, várias implicando custos mínimos. Incluem a prevenção de tortura e maus tratos, a investigação imparcial de mortes sob custódia, a publicação das conclusões, o afastamento dos funcionários envolvidos enquanto se aguarda o inquérito, a independência dos IMLs, a separação completa entre os responsáveis por detenção e os responsáveis por interrogatório, a eliminação das desumanas “celas de castigo”, a submissão de relatórios periódicos aos órgãos internacionais de monitoração das convenções contra a tortura, contra a discriminação de mulheres e sobre os direitos da criança.
Boletim Mundo Ano 7 n° 4
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