Revolta étnica da maioria albanesa reativa o nacionalismo sérvio, agita a Albânia e a Macedônia e assusta as potências
Pouco mais de dois anos depois do fim da Guerra da Bósnia (1991-95), novos conflitos e o aumento das tensões étnicas anunciavam outro capítulo nos intermináveis dramas que destruíram a antiga Iugoslávia. Desta vez, a crise étnica manifestou-se em Kosovo, região situada no sul da Sérvia, a república que, ao lado da pequena Montenegro, forma a “nova” Iugoslávia.
Os choques entre forças policiais do governo de Belgrado e manifestantes da majoritária população albanesa de Kosovo causaram, no vale do Drenica, no início de março, quase uma centena de vítimas entre os civis.
Localizada junto às fronteiras da Albânia, Macedônia e Montenegro, Kosovo representa pouco mais de 10% do território da Sérvia. Cerca de 90% de seus 2 milhões de habitantes são de origem albanesa e religião muçulmana.
Essa estranha situação etno demográfica é produto da tumultuada evolução histórica da região nos últimos seis séculos.
Kosovo ilustra de forma dramática as dificuldades dos processos de autodeterminação no espaço da antiga Iugoslávia.
Por sua localização periférica em relação à Sérvia, pela diferenciada origem étnica, lingüística e religiosa da maioria de seus habitantes e por sua contigüidade territorial com a Albânia, ela dispõe de requisitos comumente aceitos pela comunidade internacional para justificar um processo de autodeterminação. Além disso, a historicamente difícil convivência entre as comunidades albanesa e sérvia da região, reforça os argumentos daqueles que defendem o secessionismo. O principal dirigente político moderado dos albaneses étnicos de Kosovo, Ibrahim Rugova, embora tenha concordado em negociar com o governo de Belgrado, insiste no direito à completa independência.
Slobodan Milosevic, o presidente da Iugoslávia, sob pressão internacional, propôs um “diálogo aberto” com os albaneses de Kosovo. Mas deixou explícito que a “integridade territorial” da Sérvia não será objeto de negociação.
Manobrando para conferir à disputa o estatuto de “assunto interno” iugoslavo, recusou a mediação internacional oferecida pelos europeus, que atribuíram ao antigo primeiro-ministro espanhol Felipe González as funções de mediador. Para os sérvios, Kosovo é a fonte original do Estado, a alma territorial da nação, um mito histórico de extraordinária força simbólica.
Nessas condições, a questão de Kosovo envolve o conflito entre os direitos históricos reclamados pelos sérvios e os direitos democráticos de emancipação exigidos pela maioria albanesa.
Os Estados Unidos já ameaçaram impor sanções contra o regime de Milosevic, caso as forças sérvias estacionadas no vale do Drenica não sejam retiradas.
A Rússia, tradicional aliada dos sérvios, posicionou-se contra qualquer sanção. Mas prevalece entre as potências a convicção de que é necessário estabelecer um arranjo de autonomia que exclua a opção do separatismo.
Todos temem o incêndio que poderia ser deflagrado pela fagulha de Kosovo. A vizinha Albânia acredita que Kosovo é parte do seu território nacional.
Uma guerra civil na região seria a senha para um conflito internacional. A também vizinha Macedônia é outro foco de tensão, pois um quarto da sua população é constituída por albaneses étnicos, de religião muçulmana, que vivem na faixa noroeste do país, junto às fronteiras da Albânia e de Kosovo. As repercussões de outra guerra étnica poderiam se difundir também para a Vojvodina, região no norte da Sérvia, junto à fronteira com a Hungria, que abriga significativa minoria húngara. Nesse caso, o termo “balcanização”, que desde o século passado funciona como sinônimo de fragmentação geopolítica, assumiria todo o seu sangrento significado.
História e mito de Kosovo Polje
A batalha de Kosovo Polje - campo dos melros na língua servo croata é quase ignorada nos livros de História. Mas, para os povos eslavos da península balcânica, ela tem um significado muito especial. A região de Kosovo é uma espécie de centro espiritual do nacionalismo sérvio e o resultado da batalha marcou profundamente a evolução política e cultural da Sérvia.
Presentes na península balcânica, inclusive em Kosovo, desde o século VII, os sérvios estabeleceram um importante reino medieval, cujo apogeu coincidiu com a chegada à região dos turcos otomanos, de religião muçulmana. Os monarcas sérvios construíram uma série de mosteiros em Kosovo. Um deles, na cidade de Pec, tornou-se a sede do patriarcado da Igreja Ortodoxa Sérvia. Para os sérvios ortodoxos, Pec ocupou o lugar de Roma, Jerusalém e Meca para católicos, judeus e muçulmanos.
A batalha ocorreu em 28 de junho de 1389, opondo tropas otomanas ao exército conjunto de vários povos eslavos e não-eslavos, sob o comando de um monarca de origem sérvia. Nesse episódio encontram-se as origens da crença da elite política sérvia na sua vocação para a liderança dos povos eslavos do sul (montenegrinos, macedônios, croatas, eslovenos). A batalha, vencida pelos otomanos, aconteceu na planície situada ao norte da cidade de Pristina, atual capital de Kosovo. A derrota assinalou o início da penetração turca na Europa e o fim da expansão da Sérvia nos Bálcãs.
O moderno nacionalismo sérvio formou-se combatendo o domínio otomano.
De 1389 à primeira Guerra Balcânica, em 1912, quando os otomanos foram virtualmente expulsos da península, eclodiram centenas de revoltas sérvias, brutalmente reprimidas pelas autoridades turcas. Milhares de sérvios fugiram de Kosovo, estabelecendo-se mais ao norte. Essa trajetória gerou as minorias sérvias da Bósnia e da Croácia.
Durante o seu domínio, os otomanos estimularam o repovoamento de Kosovo por albaneses convertidos ao islamismo. A região transformou-se, demograficamente, em área de maioria albanesa. Mas, politicamente, consolidou a sua função de sede mitológica da nação sérvia. Foi lá que o líder sérvio Slobodan Milosevic promoveu, em 1989, uma gigantesca manifestação, na data dos 600 anos da batalha, pressagiando o turbulento fim de século dos Bálcãs.
Boletim Mundo Ano 6 n° 2
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