quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

‘‘VESPEIRO’’ ÉTNICO FILTRA A NOVA ONDA LIBERAL

Newton Carlos
Estratégias de Washington e disputas etno-tribais condicionam a reorganização dos Estados no pós- Guerra Fria
Quando Yowrei  Museveni entrou triunfalmente na capital de Uganda, em janeiro de 1986, historiadores foram unânimes em dizer que se abria nova era na África Subsaariana. Não se tratava de mais um general entre tantos que assaltaram o poder em países africanos, submetidos à proliferação de ditaduras fardadas. Museveni portava credenciais de intelectual, formando da universidade da Tanzânia, à sombra de Nyerere, um dos patriarcas do nacionalismo que começara as lutas de independência.
Assumia em Uganda, país ainda com marcas da brutalidade grotesca de Idi Amin, um guerrilheiro e um socialista, tido na época com um dos últimos cavaleiros errantes da descolonização.
Mas a pequena Uganda tornou-se em pouco tempo, sob Museveni, um experimento do Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial.
Sobrevieram as receitas ortodoxas (disciplina em vez de distributivismo fiscal, privatizações, etc.) cujo conjunto recebeu o nome de neoliberalismo. O mesmo caminho tomariam depois a Eritréia, a Etiópia e Ruanda pós-genocídio. Paul Kagame, “homem-forte” ruandês, tornou-se uma estrela dos novos tempos.
Finalmente, Laurent Kabila, outro guerrilheiro, com raízes no guevarismo, acabou com a ditadura “ultrapassada” de Mobutu, um dos heróis do anticomunismo e da descolonização “controlada”, que acumulou cerca de US$ 9 bilhões, protegido pela Guerra Fria. O Congo (ex-Zaire), agora administrado por tecnocratas formados em universidades ocidentais, juntou-se a Uganda na linha de frente de uma nova etapa, impulsionada pelos Estados Unidos, em confronto com potências coloniais decadentes como a França.
Não se fala mais em revolução ou socialismo, mas em livre mercado e iniciativa privada. A África Subsaariana é vista como mercado emergente no mundo globalizado, o que implica exclusão social, como se vê na América Latina e Ásia. Para teóricos da “economia mundo”, a contribuição africana é indispensável. Só a África possui massas rurais em vias de urbanização e espaços físicos para suportar desenvolvimento baseado em baixo custo de  mão-de-obra e recursos naturais fartos. Não se insiste tanto em democracia, mas em bom governo, à base de eficiência e disciplina e não direitos humanos.
Museveni, Kagame e Kabila, embora ditadores, se destacaram no palanque do presidente Bill Clinton, que fez extensa viagem à  África apoiado no Africa Growth and Opportunity Act, aprovado pela Câmara dos Deputados dos Estados Unidos. A nova lei de liberalização de mercado destina-se a incrementar negócios com países africanos.
Por meio do Trade and Economic Cooperation Forum, os Estados Unidos formalizam suas relações com governos africanos, “com a bandeira do capitalismo no lugar dos velhos sonhos revolucionários e socialistas”, escreveu um jornal europeu. Saem a Europa e a Guerra Fria, entram os Estados Unidos da globalização.
Tudo isso numa geografia de guerras e um vespeiro de etnias em estado avançado de combustão. Pegam fogo Serra Leoa, Guiné-Bissau, Nigéria, Sudão, Angola, Etiópia, Eritréia, Somália, Ruanda, Burundi e, de novo, o Congo.
Milicianos banyamulenges, ramo da etnia tutsi com presença bicentenária no país, espinha dorsal das forças de Kabila que derrotaram Mobutu, se rebelaram contra seu ex-herói. Sonhavam com privilégios, mas Kabila preferiu os seus, originários de Katanga, província mineral, pivô de sangrentas guerras, embora falando da impossibilidade de tratamentos especiais num universo de 300 etnias .
Tutsis e hutus de Ruanda foram para o Congo nos anos 20 e 30, mão-de-obra barata explorada pelos colonizadores belgas, para trabalhar na lavoura e em mineração. Juntaram-se aos de língua ruandense descendentes de emigrantes pré-época colonial, ainda tratados como “estrangeiros”. Foram aliados de Mobutu, que exacerbava rivalidades em benefício próprio. Nesse quadro explodiu, em 1990, a guerra civil de Ruanda, origem do genocídio de 1994.
Um milhão de hutus, expulsos do poder, se refugiaram no Congo com a pretensão de construir seu império, razão das expedições punitivas do Exército de Ruanda, antes hutu, agora tutsi.
É o vespeiro com epicentro na África oriental. Já a Nigéria, o gigante africano, oitavo maior produtor de petróleo do mundo, é dominada por três etnias. Donos do sul, os yorubas representam hoje o movimento pró-democracia. Era yoruba o chefe Moshood Abiola, que morreu na prisão depois de eleito presidente há cinco anos. Os hausas, do norte, controlam as forças armadas, no poder durante 28 dos 38 anos de independência. Era hausa o ditador morto recentemente. Os ibos tentaram em 1966 criar a sua própria república, em Biafra, e foram massacrados.
“Estamos no caminho de Ruanda”, ou de novos genocídios provocados por tensões raciais, escreveu o News, semanário nigeriano.
A África do Sul, que seria um elemento estabilizador, passa por transição difícil. Sua moeda afunda, o desemprego é de 33% e a violência urbana chega a níveis de guerra não-declarada. O sucessor já escolhido de Mandela, Thabo Mbeki, terá pesada herança: pouco ou nada mudou a estrutura de poder econômico dos brancos e permanece a exclusão social dos negros configurada nos tempos do apartheid.
Boletim Mundo Ano 6 n° 5

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