A sociedade moderna, burguesa, é filha do comércio e quase todos os seus filósofos louvaram a relação entre comércio e paz ou progresso da humanidade. Ora, nada é mais comum do que as chamadas “guerras comerciais” que, desde os tempos coloniais, opõem Estados que tentam assegurar monopólios sobre rotas de comércio.
Entre a paz e a guerra, a história do comércio mundial passa a estar submetida a uma ampla negociação entre Estados depois da catástrofe civilizatória que foi a Segunda Guerra Mundial. Terminada a guerra, os vencedores sentaram à mesa para reorganizar o mundo de acordo com os seus interesses.
Como parte das tarefas de reconstrução em todos os setores da economia, a Conferência de Bretton Woods, de 1944, lançou as bases do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (Bird). Em 1944, os vencedores da guerra planejaram também a criação de uma Organização Internacional do Comércio (OIC), que assumiria a função de supervisionar a negociação de um novo regime para o comércio mundial, baseado nos princípios do multi lateralismo (todos negociam com todos) e do liberalismo (abertura geral de todos os mercados, para que todos os exportadores se beneficiem simultaneamente).
O caráter da organização ficou evidente já no nascedouro e a OIC não saiu do papel, pois o Congresso dos Estados Unidos temia que a Carta de Havana que definia o organismo e suas funções restringisse demais a soberania americana no comércio internacional.
Os princípios do multi-lateralismo e do liberalismo são resultado de pelo menos três séculos de debates na teoria econômica.
Se todos os participantes de um mercado reduzirem suas barreiras recíprocas simultaneamente, diz a teoria, isso produzirá o maior número possível de oportunidades de comércio para todos, ampliando assim a produção, o consumo e o investimento em todo o mundo. A liberdade enriquecerá a todos, pois cada economia terá os estímulos para se especializar naquilo que faz melhor, explorando as suas vantagens comparativas.
Evidentemente, sempre houve uma enorme distância entre essa bela teoria (que funciona como um ideal a ser perseguido) e a prática (onde há fortes resistências a liberalizar). O projeto de um sistema de comércio internacional livre transformou-se, no pós-guerra, numa série de rodadas de negociações para conduzir a liberalização de modo gradual, desigual e combinado.
Em 1947, depois do aborto da OIC, foi afinal assinado um Acordo Provisório, mais restrito, que abria apenas a negociação de tarifas e regras de comércio.
Esse documento foi denominado Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (General Agreement on Tariffs and Trade, ou Gatt).
Mesmo sendo um acordo, o Gatt se transformou em mais um organismo internacional, com sede em Genebra, na Suíça.
O Gatt assumiu também funções de árbitro de conflitos ou regras negociadas entre países, em processos conhecidos como “painéis”. Além das tarifas, entraram na agenda as barreiras não-tarifárias (BNTs), tais como exigências de qualidade, empecilhos burocráticos e regras sanitárias que os governos criam para dificultar as importações. Mas o Gatt nunca foi reconhecido como tribunal: as decisões tinham de ser alcançadas por consenso.
Nasce a Organização Mundial do Comércio
O Gatt promoveu, ao longo da sua existência, oito rodadas de negociações comerciais multilaterais . A mais recente foi a chamada Rodada Uruguai, que começou em 1986 em Punta Del Este e terminou em 1994 em Marrakesh (Marrocos). Foi a mais longa de todas. O seu prazo inicial se esgotou em 1990 mas somente no final de 1991 surgiu um esboço de acordo. Os países mais ricos queriam incluir na pauta a liberalização em setores como serviços e propriedade intelectual.
Os países em desenvolvimento cobravam mais abertura dos países ricos nos setores agrícola e de produtos têxteis. Somente em novembro de 1992 os Estados Unidos e a União Européia chegaram a um acordo sobre o setor agrícola (o Acordo de Blair House), desobstruindo o caminho para a conclusão das negociações.
Mas o Acordo de Marrakesh foi assinado apenas em abril de 1994. O documento básico, com cerca de 500 páginas, define os compromissos gerais que devem regular o comércio internacional. Há também os compromissos individuais de cada membro, registrados em nada menos que 30 mil páginas. O resultado mais importante da Rodada Uruguai foi a criação da Organização Mundial de Comércio (OMC), que entrou em operação em janeiro de 1995, como sucessora do Gatt.
Para administrar, com mais poderes o sistema de comércio multilateral definido pelo Acordo de Marrakesh, a OMC instituiu o princípio da “aceitação em bloco” (single undertaking): só podem ser membros da nova organização os países que aceitarem todos os compromissos, como um conjunto indivisível. A OMC é reconhecida como tribunal e tem, portanto, poderes para solucionar controvérsias entre os seus membros.
Agora, a Rodada do Milênio
A nova rodada de negociações multilaterais, a primeira sob a égide da OMC, recebeu o título de Rodada do Milênio e terá início em novembro, em Seattle (Estados Unidos). Os 134 países-membros da OMC pretendem chegar a um novo acordo mundial de comércio até 2003.
O Brasil já apresentou propostas concretas de negociação para a Rodada do Milênio, defendendo que seja permitido a países em desenvolvimento ter políticas de incentivo à produção que não sejam consideradas subsídios (como seriam se adotadas por países desenvolvidos). É uma proposta polêmica, com o poder de catalisar apoio de dezenas de países da América Latina, Ásia e África.
A UE é campeã de incentivos e subsídios a produtos agrícolas. Mesmo depois da reforma da sua Política Agrícola Comum (PAC), que permitiu a conclusão da Rodada Uruguai, há inúmeros mecanismos de apoio do governo aos agricultores, liberando-os de taxas e impostos, oferecendo créditos especiais ou compensando-os diretamente por reduções voluntárias da produção.
Se depender dos países do Grupo de Cairns, formado por exportadores agrícolas médios como Canadá, Austrália, Argentina e Brasil, este será um dos temas principais da nova rodada. Outro exemplo de conflito refere-se à comercialização de produtos transgênicos. Recentemente, a OMC se pronunciou contra a UE, por ter imposto barreiras à importação de carne tratada com hormônio procedente dos Estados Unidos. Aqui, o tema é o das barreiras não-tarifárias.
A agenda de negociações inclui ainda temas como o controle das compras governamentais, medidas relacionadas a comércio e investimentos, regras para a defesa da propriedade intelectual, regras de origem de mercadorias, procedimentos de importação, acordos sobre inspeção de mercadorias antes do embarque e mecanismos para a solução de controvérsias. A OMC é atualmente dirigida pelo neozelandês Mike Moore, que tem um mandato de três anos (em vez dos quatro tradicionais), seguido de outro com a mesma extensão para seu principal opositor, o tailandês Supachai Panitchpakdi. O tailandês foi apoiado pelo Brasil, mas Moore teve o apoio dos Estados Unidos e ficou com o cargo. A briga pela sucessão levou 4 meses e terminou com uma semi barganha.
É mais um exemplo de como a OMC continua sendo palco para as tendências nem sempre amigáveis do comércio internacional.
Boletim Mundo Ano 7 n° 5
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