Estratégia da Casa Branca é de evitar o vazio de poder no Iraque, que participa da contenção do Irã e da repressão ao nacionalismo curdo
Muitos me criticam pelo fato de eu não ter ordenado a invasão de Bagdá e aproveitado a ocasião para depor Sadam Hussein de uma vez por todas. Mas eu não poderia ter feito isso. Em primeiro lugar, não estava certo de que eu seria apoiado pelos líderes árabes que fizeram parte da coalizão internacional. Uma coisa é punir um ditador que viola a lei internacional; coisa bem diferente é lançar uma operação que exigiria a completa ocupação militar da capital iraquiana. Além disso, creio que mesmo os líderes ocidentais, com uma ou outra exceção, não estariam dispostos a apoiar uma ação desse tipo. E, por fim, não tínhamos a certeza de que os líderes de oposição no Iraque estavam preparados para algo dessa envergadura.
A declaração, sobre a Guerra do Golfo de 1991, divulgada em fevereiro pela televisão do Congresso americano, foi feita pelo ex-presidente dos Estados Unidos George Bush, durante uma sessão de debates organizada pela Comissão de Relações Exteriores do Senado. Estados Unidos e Iraque viviam, então, o auge de uma nova crise. Bill Clinton ameaçava Sadam Hussein com a reedição de um ataque de forças multinacionais a Bagdá. Desta vez, Sadam Hussein, colocado pela Casa Branca sob suspeita de produzir e estocar armas químicas, era acusado de impedir o livre acesso de uma comissão de inspeção da ONU a todas as instalações militares iraquianas. A crise foi momentaneamente contornada, mas restou a pergunta: por que George Bush não depôs Sadam Hussein quando, aparentemente, tinha a faca e o queijo na mão?
A explicação dada pelo próprio Bush mais oculta do que revela as verdadeiras razões de Washington.
Se é verdade, como diz Bush, que os Estados Unidos não tinham as mãos tão livres assim para invadir Bagdá, também é verdade que Sadam Hussein foi armado e sustentado no poder, em especial durante os anos 80, pela própria Casa Branca. Para entender as razões de tal atitude, será necessário retroceder um pouco no tempo e deslocar nosso olhar para um país vizinho do Iraque. O ano é 1979 e o país é o Irã.
Em 1979, o Irã foi palco de um terremoto político que lançou uma nova incógnita no tabuleiro geopolítico e cultural planetário: a Revolução Xiita.
Liderados pelo aiatolá (autoridade religiosa) Khomeini, os xiitas (seita muçulmana minoritária no mundo, mas majoritária em alguns países, incluindo Irã e Iraque) derrubaram a ditadura do xá Rheza Pahlevi, apoiada por Washington, e tomaram o poder. Khomeini, imediatamente, conclamou os islâmicos de todo o mundo a lançarem uma jihad, a “guerra santa”, contra os infiéis, entre os quais ele incluía tanto os Estados Unidos quanto a então poderosa União Soviética. Isso significa, entre outras coisas, que a Revolução Xiita colocou-se fora do controle das superpotências da Guerra Fria. Nesse sentido, ela encontrava a oposição tanto de Moscou quanto de Washington.
As superpotências tinham razão para temer a eventual agitação do mundo islâmico. Com mais de 1 bilhão de adeptos em todo o mundo, o islamismo era e é a religião que mais cresce. Além disso, a maior parte de seus adeptos está distribuída em algumas das regiões mais miseráveis e politicamente instáveis do planeta: Oriente Médio, Ásia meridional, África do Norte. Nesse quadro, a conclamação de Khomeini tinha uma conotação obviamente explosiva. Era preciso fazer algo para impedir o avanço da Revolução Xiita.
A oportunidade foi criada em 1980. Naquele ano, Sadam Hussein, que havia tomado o poder no Iraque através de um golpe de Estado, em 1979, ordenou a invasão de uma área às margens do estuário do Chatt El-Arab, reivindicada pelo Irã. A ocupação, apoiada pelos Estados Unidos, União Soviética, França, Arábia Saudita e Egito, foi o estopim da Guerra Irã-Iraque (1980-88), extremamente cruel e sangrenta, que consumiu a vida de pelo menos um milhão de pessoas. Com as energias voltadas para a guerra contra o Iraque, Khomeini não pôde dar livre vazão aos seus planos de promover a “guerra santa” em escala planetária.
Além disso, o conflito opôs xiitas do Irã aos xiitas do Iraque, gerando uma divisão entre os membros da mesma seita.
Mas a utilidade de Sadam Hussein não se resumiu ao combate contra Khomeini. Ele se mostrou útil também quando se tratou de reprimir barbaramente a minoria curda, utilizando armas químicas e contando com a cumplicidade silenciosa de Washington e Moscou. Os curdos são um povo de pastores sem pátria, que há milênios vivem nas montanhas do Iraque, do Irã, da Turquia e da Síria. Eles reclamam para si a criação de um Estado nacional soberano e, por essa razão, são perseguidos pelos governos daqueles países.
São, nessa medida, um fator perigoso de desestabilização política de uma área particularmente explosiva. E são, por isso mesmo, indesejáveis.
Bush tinha, portanto, muitas razões para desejar que Sadam Hussein, seu antigo aliado, permanecesse no poder. Afinal, as bravatas apocalípticas do ditador iraquiano também ofereciam a Washington a oportunidade de se colocar como o único “xerife” do mundo, o grande avalizador da democracia e dos “valores ocidentais” na Nova Ordem Mundial que ele anunciou estar implantando, após a derrocada do império soviético.
Mas e Sadam Hussein ? O que ele ganha com sua atitude grotesca de provocação a Washington ?
Em primeiro lugar, ele posa, aos olhos de seu próprio povo, de “patriota”, de “guerreiro islâmico” contra o inimigo infiel. Demagogicamente, apela à unidade nacional do Iraque em defesa de seu próprio governo, contra o inimigo externo. Trata-se de uma operação clássica, mil vezes praticada por governos em crise (basta lembrar, como analogia, a invasão das ilhas Malvinas, em 1982, ordenada pela agonizante ditadura militar argentina, que então utilizou um discurso nacionalista contra o “imperialismo britânico”).
O impasse continua e, de certa forma, serve aos dois lados. Enquanto Washington e Bagdá travam o seu interminável duelo, o status quo do Oriente Médio e o poder de Sadam no Iraque são preservados.
Boletim Mundo Ano 6 n° 2
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