sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Vaticano opera guinada histórica

Newton Carlos
Depois de combater o comunismo soviético, João Paulo II volta baterias contra o “capitalismo desregrado” e ecoa temas da Teologia da Libertação
Em novembro e dezembro do ano passado, antes da viagem de João Paulo II a Cuba, o Vaticano realizou o Sínodo das Américas. A essência das discussões tratou da redefinição do papel crítico da Igreja na sociedade “sem os condicionamentos impostos pelo medo do comunismo”. Foi sobretudo esse medo que, em 1984, levou a Sagrada Congregação da Doutrina da Fé, ex-Santo Ofício, o da Inquisição, a condenar a Teologia da Libertação em documento que significou o golpe final da ofensiva contra a “esquerdização” de padres e féis, impulsionada pela conferência episcopal de Medellin (Colômbia), em 1968.
Medellin foi a “opção pelos pobres”, uma ruptura não simplesmente teológica, mas reflexiva, já que os debates deram ênfase especial à convicção de que “a Igreja só será cristã sendo capaz de viver e entender sua tarefa a partir de uma perspectiva dos pobres e oprimidos”. Volta “às raízes evangélicas”, segundo os teóricos de uma nova teologia saída de Medellin, a da Libertação, que sobreviveu aos duros embates dos anos 70 e conseguiu reafirmar-se em Puebla (México), 11 anos depois, já no papado de João Paulo II. Em Puebla, os bispos latino-americanos denunciaram a “distância crescente entre os muitos que têm pouco e os poucos que têm muito” e estabeleceram como prioritária a “opção pelas vítimas de estruturas sociais injustas”.
Naquele ano, João Paulo II fez uma viagem à Polônia, a primeira como papa ao seu país natal, impregnada de anticomunismo. As idéias de criação de uma “Igreja popular”, o surgimento de movimentos de “cristãos para o socialismo” e a presença de padres em guerrilhas acabariam se tornando insuportáveis para uma hierarquia preocupada com a quebra do sistema de poder vertical da Igreja. Ou com a própria sobrevivência da Igreja como instituição.
A Teologia da Libertação “navega com os ventos da dialética marxista e das lutas de classes em suas preocupações com os pobres”, disparou o cardeal alemão Joseph Ratzinger, chefe do ex-Santo Ofício. “Há mistura de verdades cristãs com opções fundamentalmente não cristãs e é inadmissível o emprego da análise marxista, por parte dos cristãos, na interpretação da realidade social e econômica”, foi o arremate do golpe final.
A Igreja, segundo Ratzinger, não podia ficar reduzida a uma parte do povo cristão, do qual “também fazem parte não pobres e não oprimidos”. Qual não foi a surpresa, portanto, quando há quatro anos João Paulo II teve gesto de gentileza para com Karl Marx. Admitiu em discurso em Riga, capital da Letônia, que o marxismo “tem pitadas de verdade”.
A viagem a Cuba se realizou já sem os “condicionamentos” antes produzidos pelo medo ao comunismo.
O Sínodo das Américas cuidou de exorcizar os medos antigos, tarefa nada complicada, tendo em vista o naufrágio do chamado “socialismo real”. A idéia de reprodução, no Caribe, dos acontecimentos de 1989 na Europa Oriental foi esfriada pelo próprio Vaticano. Fontes da Igreja em Roma passaram a jornalistas a informação de que o papa não quer que se repita em Cuba o que sucedeu no antigo império soviético, “o advento de um capitalismo selvagem, de máfias”.
Os discursos no Brasil, em outubro do ano passado, já tinham deixado clara a inconformidade papal com os rumos do pós-comunismo. Na esteira de ataques ao “capitalismo desregrado”, socialmente “irresponsável”, João Paulo II afirmou que nenhum sistema econômico é completo sem justiça social e é inaceitável o livre-mercado, que promove individualismo excessivo e compromete o papel da sociedade. Pesou, e muito, em seus brios polacos ver ex-comunistas reassumirem o governo pelo voto do povo, o da sua Polônia, politicamente rebelado contra o “capitalismo selvagem”. E cresceu no papa a disposição de denuncia, com o que foi feito nos discursos e homilias em Cuba.
Bispos centro-americanos já haviam aprovado documento de dura condenação do neoliberalismo.
O pós-Cuba teve como fato imediato a divulgação do documento do Pontifício Conselho de Justiça e Paz, sobre reforma agrária. Ele descreve o processo de concentração da terra e suas conseqüências negativas, sublinhando as amarras institucionais que impedem a reforma agrária. O fator de impasse é a concentração e a solução exige reforma. Quanto à ocupação de terras, é tratada como “sinal urgente para que se faça rapidamente reforma agrária eficiente”. Só assim, desaparecerão as “situações geradoras das ocupações”. Não se trata, como se vê, de apoio morno, burocrático, mas de tomada de posição que encara inclusive a questão delicada das ocupações.
Virada, guinada ou o que seja do estilo, tendo a viagem a Cuba como marco histórico ? Leonardo Boff, apóstolo brasileiro da Teologia da Libertação, pensa que João Paulo II, “extremamente sensível à dimensão da justiça e da ética social”, depois de ver o que significou o triunfo do neoliberalismo, afinal concordou com críticas da Teologia da Libertação, mostrando um “sistema perverso e desumano”. A questão que se colocaria, a partir de agora, é saber se é ou não possível mudar a “alma” do sistema sem mudar o próprio sistema. Boff acredita que não e ainda vê ambigüidades nos discursos de João Paulo II, embora ele tenha assumido, segundo o teólogo brasileiro (que foi uma das vítimas do ex-Santo Oficio), princípios fundamentais da Teologia da Libertação: a opção pelos pobres deve ser de toda a Igreja, e não apenas dos teólogos, e a fé deve ter dimensão pública e política, não apenas mística e eclesiástica.
Uma coisa é certa: João Paulo II é, provavelmente, o papa mais “político” e mais “intervencionista” deste século. Em seu papado, as representações diplomáticas no Vaticano já chegam a 165.
Eram 87, há vinte anos. O livro Sua Santidade, de Carl Bernstein e Marco Politi, mostra como o anticomunismo condicionou esse intervencionismo.
Um dos confidentes de João Paulo II foi Bill Casey, ex-diretor da CIA. O alvo agora seria o neoliberalismo ? O próprio papa teria dito, segundo indiscrições de íntimos, que “acabado o comunismo, o alvo principal passa a ser o capitalismo”.
Boletim Mundo Ano 6 n° 1

Nenhum comentário:

Postar um comentário