quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Diário de Viagem- EU VI QUANDO O MURO CAIU...”

José Arbex Jr.,
9 de novembro de 1989, 18h45, Sala de Imprensa do Departamento de Relações Exteriores da Alemanha Oriental. Gunter Schabowski, chefe do Comitê Municipal do Partido Comunista de Berlim Oriental declara encerrada uma entrevista coletiva a cerca de 300 correspondentes estrangeiros. Um dos jornalistas ainda encontra brecha para fazer uma última pergunta: “O governo pretende tomar alguma atitude em relação aos milhares de berlinenses que querem passar para o lado ocidental?” Em tom casual, como quem faz uma declaração totalmente corriqueira, Schabowski responde: “Como? Vocês não sabiam?
Está aberta a passagem para todos os que queiram se dirigir a Berlim Ocidental.” A tradução disso era: caiu o Muro de Berlim!
A primeira reação é de perplexidade, seguida de uma enxurrada de perguntas nervosas e incrédulas. Em seguida, todos os correspondentes se retiram da sala, nervosos, comunicam a grande notícia aos seus jornais, emissoras de TV e rádio, e se dirigem rapidamente ao “Checkpoint Charlie”, o mais famoso posto fronteiriço do muro (o nome Charlie corresponde à letra C no jargão de pilotos e rádio amadores americanos). O inacreditável acontece diante dos olhos de todos. É tudo verdade. A passagem está livre, apesar de ainda haver fiscalização de fronteira. O Muro de Berlim acaba de ruir.
Ainda incrédula, a multidão enfrenta o frio noturno e se dirige ao Muro de Berlim
A notícia espalha-se por Berlim Oriental com espantosa rapidez. Em poucos minutos, as vias públicas que conduzem ao muro ficam abarrotadas por pequenos e poluidores automóveis Trabants (“trabi”, na gíria local) ou por pessoas a pé. Paira, ainda, um estranho silêncio na noite fria (pouco acima de zero grau): todos temem que de um momento para o outro a situação volte à sua normalidade repressora. Um resto de incredulidade impede, ainda, que a euforia simplesmente aconteça. Uma velhinha desce de seu apartamento de chinelo, usando só um sobretudo de lã sobre a camisola, apesar do frio. Teme perder a chance de pisar no “outro lado”.
Berlim, nos dois lados, não dormirá esta noite. Uma Berlim contempla a outra, e o reconhecimento da alteridade, numa  operação mágica de oposição de planos, destaca aquilo que há de idêntico nas duas. A festa na rua recupera, momentaneamente, o clima frenético da antiga capital da Alemanha. Começa a ser superada a ruptura geopolítica da cidade. Durante horas a fio, milhares e milhares de alemães-orientais passam para o outro lado, onde cada um recebe do governo a quantia de 100 marcos  (equivalentes a US$ 55) como símbolo de boas-vindas. Essa quantia, cedida mediante a apresentação de passaporte alemão-oriental, era tradicionalmente garantida a todos os alemães-orientais que conseguissem ultrapassar o antes quase intransponível muro.
O carnaval começa na Kurfurstendamm (avenida principal de Berlim Ocidental, mais conhecida como Ku’damm), feito de fogos de artifício, de beijos e abraços de casais e famílias que se reencontram após anos de separação, ou de pura euforia coletiva. Não há como ficar indiferente.
Carnaval sim, mas carnaval germânico, bem entendido. Basta dizer que ninguém, nem os mais bêbados, ultrapassa a faixa reservada aos ônibus, até que seja dada permissão para isso. Há uma incrível ordem no meio da euforia.
O ‘‘carnaval’’ na Ku’damm intensifica a estranheza, a sensação onírica de que algo extraordinário estava acontecendo naquela noite
Isso só faz aumentar a estranheza, a sensação onírica de que algo extraordinário acontece diante de nossos olhos.
Os postos fronteiriços colocados ao longo do muro logo se tornam insuficientes para dar vazão ao fluxo de pessoas.
Em comum acordo, as prefeituras das duas  Berlim começam a abrir passagens. O processo escapa ao controle das autoridades, e o muro começa a ser furiosamente destruído. No início, há até incidentes com a polícia alemã- oriental. Mas nada pode conter a mistura de fúria e euforia da multidão.
O cenário parece extraído de algum livro maluco de ficção. Jovens armados de pás e picaretas arremetem,  furiosos, contra o muro de cimento, estimulados por gritos de milhares de pessoas. Toda vez que uma laje cai, o fato é celebrado como num ritual bárbaro de luta e conquista.
É o poder do herói sobre a presa. Só que, desta vez, o monstro não está dentro do labirinto - como o Minotauro de Creta -, mas é o próprio labirinto. Os jovens sentem-se investidos da aura coletiva de Teseus contemporâneos.
Impessoais e implacáveis, as escavadeiras enviadas pelo governo alemão-ocidental para abrir oito novas passagens são também saudadas como instrumentos de redenção.
São adoradas em sua missão heróica. As lajes que caem do lado oriental estão todas pichadas, cada centímetro quadrado. Milhões de turistas ao longo dos anos deixam ali a impressão de suas memórias, os “baby I Love you”’, os “I was here” e também as palavras de ordem contra o muro e o regime.
Em algum momento, uma laje com a caricatura  do odiado ex-dirigente Erich Honecker cae sob o impacto de uma picareta. Os aplausos são tremendos, como se se tratasse de uma espécie de vudu político, com a propriedade de destruir, ou, talvez, de causar dor ao próprio Honecker. Ao destruir o Muro de Berlim - metáfora da dilaceração da alma de uma nação - os jovens buscam reconstruir sua própria integridade psicológica. Nesse contexto, mesmo os fatos mais prosaicos, os diálogos e gestos mais rotineiros parecem emanar de um sonho. As horas passam muito rapidamente, e ainda muito devagar.
A precipitação de fatos históricos causa confusão na percepção normal da passagem do tempo. Éramos partícipes de um filme que narra, em algumas horas, ou minutos ou segundos a epopéia de uma nação, do planeta no século XX. Em síntese, o tempo vivido adquire uma dimensão mitológica.
Presenciei tudo isso, como correspondente do jornal “Folha de S. Paulo” – o próprio relato que acabo de expor foi extraído de várias reportagens e crônicas por mim enviadas ao jornal, do local em que tudo acontecia. Lembro-me perfeitamente bem de que, à época, eu tinha plena consciência de que estava vivendo eventos de dimensões singulares, de importância crucial para os rumos de toda a humanidade. Como todos  as outras pessoas que receberam em cheio o impacto daqueles dias alucinantes, fiquei embriagado sem ter bebido uma única gota de álcool.
Era simplesmente inacreditável, tudo aquilo, e no entanto a coisa toda acontecia.
Tornava-se impossível separar a percepção dos eventos de ordem pessoal, estritamente vinculados à esfera subjetiva, do  grande significado histórico (isto é, público) que aqueles acontecimentos tinham para todos. Ou, para utilizar uma expressão de Eric Hobsbawn (A Era dos Extremos), acontecia ali um cruzamento entre o evento público e a pequena história individual:
“(...) Os acontecimentos públicos são parte da textura de nossas vidas. Eles não são apenas marcos em nossas vidas privadas, mas aquilo que formou nossas vidas, tanto privadas como públicas. Para este autor, o dia 30 de janeiro de 1933 não é simplesmente a data, à parte isso arbitrária, em que Hitler se tornou chanceler da Alemanha, mas também uma tarde de inverno em Berlim, quando um jovem de quinze anos e sua irmã mais nova voltavam para casa, em Halensee, de suas escolas vizinhas em Wilmersdorf, e em algum ponto do trajeto viram a manchete. Ainda posso vê-la, como num sonho.”
Como num sonho, eu vi e ainda posso ver quando o Muro caiu. Mas aquela não foi nem a primeira e nem seria a última vez que algo assim acontecia em minha vida.
Boletim Mundo Ano 7 n° 6

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