quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

SÃO FRANCISCO, MITO NACIONAL E GEOPOLÍTICA REGIONAL

Lula é estridentemente a favor.
Mas Fernando Henrique prefere esperar “maiores estudos”. O que ele espera é o fim da campanha da reeleição. Até lá, não vai assumir posição definitiva sobre o tema explosivo da transposição das águas do rio São Francisco. O São Francisco não é um rio qualquer. Através da história da América Portuguesa e do Brasil, desempenhou funções surpreendentes.
Foi mito territorial, eixo de colonização, recurso energético e hidráulico.
No século XVI, a cartografia colonial portuguesa assinalava a existência de um lago - Dourado, Eupana, Laguna encantada del Paytiti, Paraupaba, dependendo do mapa. O lago aparecia como nascente de grandes rios que, formando um arco, separavam as terras do leste da América do Sul. Nos primeiros mapas, o Dourado era a fonte comum dos rios Tocantins e São Francisco, cujos cursos eram desconhecidos. Em algumas dessas figurações imaginárias, o São Francisco aparece ligado ao Paraná através de outro lago.
Junto ao lago lendário, uma cidade dourada, cheia de riquezas, aguardava os exploradores. A primeira bandeira digna desse nome foi a expedição de Gabriel Soares de Sousa, que partiu da Bahia em 1590 em busca do Dourado.
Por três décadas, outras bandeiras trilharam os vales do São Francisco e Tocantins. O lago da fortuna foi então transferido para mais longe, a ocidente, e apareceu nos mapas unindo as águas das bacias  amazônica e platina. Mas o mito ecoa na alcunha que, muito mais tarde, seria aplicada ao São Francisco: “rio da unidade nacional”.
A empresa açucareira na Zona da Mata nordestina combinou, nos seus momentos iniciais, as plantations com as culturas de subsistência e a criação de gado. Logo, o sucesso dos engenhos provocou a expansão dos canaviais e o monopólio do produto de exportação sobre as terras úmidas do litoral. Partindo de Pernambuco e da Bahia, a criação de gado, expulsa para o interior, passou a trilhar o eixo do São Francisco.
Os vaqueiros ocuparam as margens do rio, de seus afluentes e de simples riachos. No final do século XVII, uma parte significativa do Sertão tinha sido povoada. Tropas enviadas de Recife e Salvador terminaram de subjugar ou dizimar os indígenas. A chamada “civilização do couro” definia os contornos do semi-árido. O São Francisco ganhava a sua segunda alcunha: “rio dos currais”.
Nos séculos  XIX e XX, os temas da decadência e pobreza passaram a definir a moldura do debate sobre o Nordeste.
A tendência inicial consistiu em identificar a falta de água como causa do “atraso” do Sertão semi-árido. Em 1884, D. Pedro II iniciou a construção do primeiro grande açude, em Quixadá, no Ceará. Era o começo do período das “soluções hidráulicas”, sob direção do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), criado por Getúlio Vargas.
Nos anos 60, o diagnóstico sobre a pobreza nordestina, repercutindo as teorias desenvolvimentistas da época, passou a enfatizar o “atraso industrial”.
A Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) foi criada para incentivar investimentos industriais na região. Ao mesmo tempo, com as Centrais Hidrelétricas do São Francisco (Chesf ), iniciou-se a implantação de uma rede de geração e transmissão de energia. Nos trechos encachoeirados do “velho Chico” surgiram as usinas de Paulo Afonso, Sobradinho, Itaparica, Moxotó, Xingó e Piranhas. A usina de Sobradinho, junto às cidades gêmeas de Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), com seu imenso reservatório, revelou todas as possibilidades de irrigação na área do vale. No lugar da produção familiar de subsistência, apareceram cultivos comerciais de uva e frutas tropicais. Os camponeses pobres deixaram as terras da várzea, submersas pela represa.
A transposição assinala uma retomada das “soluções hidráulicas”. O rio São Francisco tem suas nascentes em Minas Gerais, fora do semi-árido. O regime tropical de chuvas no seu alto curso garante-lhe a vazão necessária para a travessia do Sertão. Até recentemente, era o único rio perene do semi-árido.
Hoje, outros rios foram perenizados através da construção de represas e açudes.
Mas nenhum deles se compara, em vazão, ao São Francisco.
O projeto envolve o desvio de 150 m3/s de água, cerca de 5% da vazão, para bacias hidrográficas do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. O custo estimado é de algo como US$ 700 milhões, no prazo de 2003. Há duas ligações principais previstas. Uma delas verteria águas para o rio Jaguaribe, no Ceará, através de 120 km de canais. Da bacia do Jaguaribe, seriam desviadas águas para o rio Piranhas (que passa a se chamar Açu no Rio Grande do Norte), para o Apodi e para o açude de Orós.
A outra ligação verteria águas do São Francisco para o rio Paraíba, através do açude pernambucano de Poço da Cruz .
Obviamente, a idéia tem o apoio entusiasmado das elites do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. Nesses estados, a transposição é apresentada como solução milagrosa para o problema das secas e fundamento de inúmeros projetos de irrigação. Em Pernambuco, há um apoio discreto. O estado perde alguma água no cômputo total, mas em compensação seria atravessado por todos os canais.
É na Bahia que se concentra uma oposição radical, geralmente amparada em argumentos ambientais. Há os que afirmam que o projeto é tecnicamente inviável, em virtude da elevada evaporação e infiltração. Há também aqueles que criticam seus altos custos, diante de benefícios incertos, e reivindicam a aplicação de parte dos recursos em projetos estaduais de irrigação. E há, ainda, os que simplesmente reclamam a perda de água que “pertence” à Bahia.
FHC adia uma definição, para não brigar com o tucano Tasso Jereissati, governador do Ceará, nem com o cacique baiano Antonio Carlos Magalhães, chefe do PFL. Lula, que não tem esperanças eleitorais na Bahia, joga suas fichas nordestinas nos estados setentrionais.
São Francisco, “rio da divisão regional”?
Boletim Mundo Ano 6 n° 5

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