segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Democracia falsificada

Disputa interna no Partido Colorado revela que, dez anos depois de Stroessner, Paraguai continua sem instituições democráticas.
Uma piada popular no Paraguai diz que, se houver uma guerra nuclear, apenas duas espécies vão sobreviver: as baratas e os militantes do Partido Colorado. No poder há 50 anos, o partido realizou prodígios. Era colorado o ditador Alfredo Stroessner, que governou o país com mão de ferro entre 1954 e 1989. Assim como continuou colorado o general que o derrubou, Andrés Rodríguez. Para as eleições presidenciais deste ano, porém, a originalidade do partido bateu todos os recordes.
O candidato ungido dentro do partido foi o general da reserva Lino Oviedo, ex-ministro da Defesa e inimigo mortal do presidente Juan Carlos Wasmosy (também colorado, é claro), a quem tentou derrubar em 1996.
Oviedo e Wasmosy  que perdeu, no partido, a indicação de seu cupincha Raúl Cubas como candidato à Presidência - vêm se engalfinhando há anos. Com direito a um período de clandestinidade do general, que sempre liderou as pesquisas pré-eleitorais.
Para o Mercosul, que em 1994 aprovou a Cláusula Democrática, vetando a presença de regimes ditatoriais, restou um abacaxi a ser descascado. Em 1996, quando Lino Oviedo liderou uma quartelada contra Wasmosy, o Mercosul deu apoio decisivo ao presidente eleito. Com direito a um telefonema do ministro brasileiro do Exército, Zenildo de Lucena, exigindo que o colega de farda se comportasse. Mas agora o golpista Oviedo é o candidato legítimo dos colorados, que só pode ser passado para trás se Wasmosy arranhar as normas da democracia.
O curioso é que Oviedo e Wasmosy foram aliados por muito tempo. Ao que tudo indica, o general fechou os olhos para o enriquecimento suspeito do presidente, proprietário da maior empresa de engenharia do país, responsável pela construção da parte paraguaia da usina de Itaipu.
Wasmosy também nunca deu bola para as conhecidas ligações entre Oviedo e a máfia oriental, muito ativa no contrabando, em Ciudad del Este. Os dois, aliás, foram cúmplices em acobertar o assassinato do general Ramón Rosa Rodríguez, em 1994. Ele foi morto, aparentemente, por soldados do Exército, quando se dirigia ao palácio presidencial.
Levava uma pasta com documentos incriminando figurões da política local no ultra- lucrativo tráfico de drogas. O principal acusado era o ex-presidente Andrés Rodríguez, com quem tanto Oviedo como Wasmosy mantinham boas relações.
As divergências começaram quando se discutia a sucessão de Wasmosy. Primeiro, Oviedo tentou ganhar na marra, via golpe militar. Não conseguiu a adesão esperada entre os oficiais e ficou isolado no plano internacional.
Os embaixadores do Brasil, Argentina e Estados Unidos deram entrevistas em pleno centro de Assunção, denunciando a quartelada. Mas Wasmosy compôs com o general, nomeando-o ministro da Defesa, de forma a evitar novos problemas com os militares. Para facilitar o arreglo, o presidente até solicitou (e conseguiu) que o embaixador do Brasil, Márcio Paulo Dias, fosse substituído por um diplomata menos comprometido com os acontecimentos de 1996.
Oviedo dedicou-se então a conquistar as bases do Partido Colorado.
Não se trata, na verdade, de um partido, mas de uma instituição que, desde os anos 40, confundiu-se com o serviço público e as Forças Armadas. Até meados da década de 90, todos os funcionários públicos e oficiais tinham de ter a carteirinha da agremiação. O tom messiânico e nacionalista do general garantiu-lhe popularidade. Discursando quase sempre em guarani  a língua popular de um país formado em 91% por mestiços - Oviedo foi o principal beneficiário da onda de denúncias sobre os escândalos de corrupção no governo Wasmosy.
Essa popularidade, e o fato de que a unção colorada representa mais de meio caminho para a presidência, provocaram uma dor de cabeça entre os diplomatas brasileiros e argentinos.
Mas respaldar os golpes de tapetão de Wasmosy representaria arranhar a credibilidade democrática do Mercosul. No fundo, Brasília e Buenos Aires preferiam cravar a coluna do meio, esperando que a Justiça paraguaia, muito dependente do governo, tratasse de vetar a candidatura do general. Assim se evitaria a instalação de um governo imprevisível. Enquanto isso, o principal candidato oposicionista, o liberal Domingo Laino, ficava na moita. Na expectativa de aproveitar a divisão dos colorados e interromper meio século de hegemonia política do partido.
Guerra do Paraguai não foi fabricada pelos britânicos
A Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870) teve um papel decisivo na subordinação do Paraguai aos vizinhos mais poderosos: Brasil e Argentina.
No século XIX, os sucessivos governos de Rodríguez de Francia, Carlos Antonio López e de seu filho Solano López (que assumiu a presidência em 1862), adotaram uma linha de desenvolvimento econômico autárquico. O Paraguai  instalou a primeira ferrovia sul-americana, assim como uma eficiente fundição de ferro (a de Ybicuí), que lhe deram condições de manter uma certa autonomia em relação ao Brasil, à Argentina e também à Grã-Bretanha, cuja influência sobre a América do Sul era, então, considerável. Essa circunstância gerou, na historiografia vulgar, o mito de que a Guerra do Paraguai, como é conhecida por aqui, foi uma maquinação do “imperialismo britânico”, destinada a impor a abertura de mercados no espaço platino.
Não há nenhum apoio factual para o mito. Os britânicos tiveram influência tênue na guerra terrível, que exterminou 800 mil paraguaios, três quartos da população do país. As razões da guerra não se encontram na Europa, mas aqui mesmo, onde as elites brasileiras e argentinas procuravam afugentar o espectro da fragmentação territorial dos seus Estados oligárquicos.
No Brasil, o separatismo sulista expresso pela Revolução Farroupilha (1835-45) só foi contido por um acordo entre a elite imperial do Rio de Janeiro e a oligarquia gaúcha. Essa oligarquia periférica renunciou à secessão mas conseguiu, em troca, o controle da política externa brasileira para o Uruguai. E seus aliados uruguaios encontravam-se, na década de 1860, em situação desesperadora. Nesse pequeno país, o poder pendia para o lado dos blancos, aliados de Solano López.
Na Argentina, a elite portenha de Buenos Aires enfrentava há décadas a oposição dos caudilhos da Campanha.
A unidade social e territorial do país era quase uma ficção. E os esforços unitaristas da elite portenha eram sabotados pela atração exercida pelos blancos uruguaios e pelo regime de Solano López sobre os caudilhos do interior.
Solano López tinha seus próprios sonhos, que não eram modestos. Ele visualizava na aliança com os blancos uruguaios um passo no rumo da formação de um Estado poderoso na área platina, com vasta fachada marítima e controle sobre a navegação nos rios Paraná e Paraguai. A instabilidade política nas províncias setentrionais da Argentina e a vastidão desprotegida do Pantanal brasileiro multiplicavam as suas ambições.
Boletim Mundo Ano 6 n° 2

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