Newton Carlos
As desigualdades econômicas, o expansionismo e o fundamentalismo religioso desafiam o projeto de uma sociedade solidária e laica
Há uma anedota célebre entre os judeus de Israel. Um avô andava com o neto na parte velha de Tel Aviv e ia relatando a sua vida. Conversa entre duas gerações. Está vendo aquela casa ? Fui eu quem a construiu. E essa ruela ? Trabalhei duro na sua pavimentação.
Este pequeno hotel foi todo pintado por mim, não há um tijolo neste muro que não tenha sido assentado pelas minhas mãos. Impressionada, a criança não se contém e pergunta: vovô, quando jovem o senhor era árabe ?
A idéia é mostrar que, no israelense de hoje, não se encaixa a percepção de judeus cumprindo tarefas que, no passado, faziam o dia-a-dia do pioneirismo sionista. Inclusive o sonho socializante embutido nos kibutzin, que chegaram a representar 90% da população de Israel e estão, agora, reduzidos a relíquias. A central operária Histadrut, ex-símbolo do controle social de grande parte da economia do país, agora enfrenta o neoliberalismo da direita no poder. Situação resultante, em parte, da economia de guerra, embora o sionismo haja sido criado para dar paz eterna a judeus perseguidos por toda parte e vítimas do holocausto. Antes da Guerra dos Seis Dias, em 1967, os gastos militares consumiam 10% do PIB de Israel.
Depois da guerra do Yom Kippur, em 1973, subiram a 18%. A escalada alcançou o pique de 32% pós-invasão do Líbano, em 1980, e incluindo a construção de arsenal nuclear.
O trauma recente provocado pela morte de um soldado israelense no Líbano se associa à perplexidade do neto diante do avô da anedota, orgulhoso de seu pioneirismo. Imigrante russo de 23 anos, chegado há três, o sargento Nikolai Rappaport caiu numa emboscada no sul do Líbano e, em meio às homenagens prestadas a ele, descobriu-se como vivia. “Ninguém entre os que renderam tributo a Rappaport sabia da sua tragédia pessoal, porque neste país é possível morrer como herói e viver como cachorro”, escreveu o jornal Maariv.
O presidente Ezer Weizman ficou chocado com a “penúria da família de um combatente de Israel”, empilhada em casa de um quarto num subúrbio miserável de Tel Aviv. “Há um muro entre imigrantes e israelenses”, queixou-se outro russo de um contingente de 800 mil, enorme coral de lamentos. Já o sionismo mandava procurar a “terra prometida”.
O sonho de David Ben-Gurion, o fundador, era mesclar imigrantes aos que se assentaram antes, sobretudo durante o mandato britânico na Palestina, de 1922 a 1948, para livrá-los do “complexo do judeu da diáspora”. Seriam forjados “novos israelenses”, impregnados de valores modernos, combativos na busca da pátria comum e solidários socialmente. Rappaport não pôde sequer ser enterrado em cemitério judaico.
Sua mãe não é judia e, de acordo com as leis religiosas, ele não é considerado judeu. Seu pai acabou levando o corpo para a Rússia e, apesar de judeu genuíno, não sabe se volta. Israel recebeu 2,5 milhões de imigrantes desde 1948 e teve sua população multiplicada por dez em 50 anos. Ondas seguidas de fugitivos do anti- semitismo.
Mas a ocupação de territórios árabes e a opressão de palestinos transformaram Israel no lugar mais perigoso do mundo para judeus. Outro objetivo dos precursores foi fazer com que os imigrantes tivessem acesso a atividades produtivas, por meio de integração na agricultura, construção civil e indústria, das quais estavam marginalizados na diáspora. Isso de fato ocorreu durante o mandato britânico. Com o advento de Israel, ironicamente, o capitalismo terminou com o sionismo “social e nacional” e o país, um dos mais igualitários nos anos 50 e 60, tornou-se um dos mais injustos.
O herói Rappaport é a imagem dessa frustração.
Surgido em 1897, o sionismo propunha instalar um “lar nacional” para os judeus. Havia outro objetivo - a laicidade. Theodor Herzl, criador do movimento, inclusive manifestava “certo desprezo” em relação a rabinos pregadores da fé como única possibilidade de salvação diante do anti-semitismo. Queria o Estado separado da Igreja. Sionismo era, simplesmente, nacionalismo judaico, talvez comparável a movimentos europeus de libertação nacional como os dos irlandeses, tchecos e italianos. Mas o sionismo foi, afinal, “capturado pelo nacionalismo repressivo ou transformado em ambições messiânicas pelos fundamentalistas religiosos”, nas palavras do escritor Amos Elon.
Não faltou o pecado original - o de ignorar a presença de outro povo nas terras que os pioneiros tratavam de ocupar. Já na década 20 agravaram-se os conflitos. Hannah Arendt declarou o sionismo “tragicamente mal conduzido” por não conseguir convivência pacífica entre árabes e judeus. Os árabes se sentiram no direito de recusar a partilha da Palestina e a criação do Estado de Israel, em 1948. A visão do sionismo como um movimento secular passou a ser seriamente desafiada por fanáticos religiosos, a partir da Guerra dos Seis Dias e da ocupação de terras árabes. A direita política ergueu a bandeira do “destino manifesto” e a colonização dos territórios árabes tornou-se “missão divina”.
A partir de 1977, com o triunfo do Likud sobre o trabalhismo, judeus ultra ortodoxos entraram no jogo político. Hoje, os partidos religiosos assumem maiores poderes. O assassinato de Itzhak Rabin, depois da assinatura dos acordos de paz, expôs tragicamente o fanatismo de base teológica. Amos Elon afirma que rabinos fanáticos e politizados são agora “vozes dominantes”. Como fica um dos legados da tradição liberal ocidental ainda de pé, a democracia ? Há quem duvide que ela sobreviva à “rígida ideologia de Estado”, submetida a um “destino manifesto” que impôs o sacrifício de Rabin.
Boletim Mundo Ano 6 n° 3
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