João Batista Natali
Cenário hipotético projeta, no horizonte de duas décadas, a emergência de uma superpotência capaz de reduzir até o Japão à condição de satélite geopolítico
Há pouco menos de 15 anos, economistas e militares americanos e asiáticos reuniram-se na Coréia do Sul para esboçar um diagnóstico sobre o perfil que a Ásia apresentaria por volta de 2020. Desse exercício de futurologia saiu uma hipótese já naquele momento bastante ousada: o Japão, ainda hoje incontestável epicentro regional, se tornaria o mais domesticado de um conjunto de “tigres” que gravitariam em torno da China. A China, por sua vez, desfrutaria da condição de única e verdadeira potência econômica e militar do Pacífico oriental.
Há muitas condicionantes para que essa previsão se concretize. Mas é certamente por conta da existência dessa hipótese nos cálculos estratégicos dos Estados Unidos que as administrações Reagan, Bush e Clinton têm sido tão condescendentes para com aquele país gigantesco.
Essa condescendência de Washington vai muito além das conveniências do tempo da Guerra Fria, quando as rivalidades entre Pequim e Moscou eram estimuladas a fim de reduzir as chances de reunificação do “mundo comunista”.
1978: começa a ‘‘modernização’’
A chamada modernização da China se iniciou em 1978, com a autorização da abertura de empresas privadas.
Mao Tsetung estava morto havia dois anos e o “neomaoísmo” de Hua Guofeng naufragara na ponta final de um processo que já havia vitimado o “Bando dos Quatro”. Esse grupo de dirigentes comunistas, reunidos em torno de Jiang Qing, viúva de Mao, tentou impor a preservação da ortodoxia marxista e do fechamento em copas da economia e da diplomacia chinesas. Depois das condenações contra os ortodoxos, o homem forte, reabilitado entre as vítimas da Revolução Cultural (1966-1970), era Deng Xiaoping.
O novo “timoneiro” não perdeu tempo. Em 1978, reformulou o sistema de preços e salários, libertando-o do arbítrio da burocracia estatal e tornando-o dependente da aplicação interna da lei da oferta e da procura. No ano seguinte, deflagrou uma descoletivização maciça da propriedade rural, estimulando o ressurgimento da pequena produção camponesa. Estavam lançadas as bases para que a chamada “economia socialista de mercado” se tornasse política oficial, em 1992.
A China tem hoje 1,24 bilhão de habitantes. Se cada chinês comprar um walkman, o país estará consumindo algo como o PIB da Bélgica. Se a compra for de uma geladeira, será algo como o PIB do Brasil. E se cada chinês comprar um terço de um Uno Mille, já se movimentará o equivalente ao PIB do Japão. Com uma escala demográfica dessa amplitude, faltariam à China apenas capital e tecnologia. São justamente os ingrediente que têm sido injetados maciçamente em suas veias de dez anos para cá. Em média, o país recebeu 43 bilhões de dólares anuais, nos três últimos anos. São investimentos canalizados sobretudo para as províncias litorâneas próximas a Hong Kong, que aliás concentram a metade dos “novos ricos” chineses, assim chamados por terem uma renda anual superior a 12.500 dólares (a média nacional é de 3.300 dólares).
É claro que esse modelo de crescimento gera desigualdade social inédita durante as décadas de socialismo ortodoxo. Há 160 milhões de camponeses desempregados.
Nas grandes cidades, estariam desempregadas algo como 25 a 31 milhões de pessoas. Embora as estatísticas oficiais sejam bem pouco confiáveis, elas também demonstram que, hoje, as 1,3% famílias mais ricas controlam 32% da riqueza, enquanto as 44% mais pobres possuem apenas 3% da renda nacional.
A manutenção de um modelo de iniqüidade tão gritante, inexistente há duas décadas, só seria viável sob uma estrutura política absolutamente autoritária, capaz de reprimir qualquer veleidade reivindicativa daqueles situados na base da pirâmide de rendas. Essa gente deve permanecer desarticulada em nome da modernização e da paz social. Em países como a Malásia ou a Indonésia, a repressão a essa válvula social ocorreu pelas mãos de regimes ditatoriais de direita. Na Indonésia, o mecanismo repressivo entrou em colapso no ano passado. Na China, o modelo é similar, mas sob a ditadura de “esquerda” do Partido Comunista. É ele que gestiona o retorno explícito ao capitalismo, ritmando a falência em cascata de pequenas e médias estatais ineficientes.
A China não tem pressa em privatizar suas 119 mil estatais
A China contaria ainda com 118 mil estatais. Não tem pressa em privatizar. Prefere não incorrer no mesmo erro que a Rússia, que desmontou o Estado sem que uma estrutura alternativa de capital pudesse assumir seu lugar, abrindo caminho para as máfias ocuparem o vácuo econômico e político, prosperando às custas do empobrecimento da sociedade. O regime chinês quer empresas competitivas, com padrão de gestão ocidental, capazes de operar agressivamente no mercado externo. É em parte pelo sucesso desse modelo que o país acumula hoje reservas cambiais de 141 bilhões de dólares. E é também por meio dele que surgiu uma nova classe de businessmen os que têm telefone celular, automóvel, uma residência confortável e roupas de grife que tende a crescer e a comandar, sob a tutela do partido único, a decolagem da poderosa fera asiática. Uma fera capaz teoricamente de, a longo prazo, domesticar o Japão, que possui apenas um décimo da população chinesa e que este ano, mesmo assim, ainda será capaz de produzir 3,4 vezes mais riquezas.
A poderosa China do futuro abrangeria Taiwan, talvez num sistema de autonomia semelhante ao concedido a Hong Kong. E aprofundaria ainda mais os laços com a próspera diáspora chinesa que controla vasta parcela das economias de Cingapura, da Malásia, da Tailândia e do Vietnã. Vale a pena manter relações sólidas com uma fera como essa.
Há 50 anos, Mao fundava a China vermelha
O ano de 1949 foi um dos mais “quentes” da Guerra Fria. Foi o ano em que a União Soviética testou sua primeira bomba atômica e no qual nasceu a Alemanha Oriental, como reação ao estabelecimento da República Federal Alemã. Foi também o ano em que os comunistas tomaram o poder na China.
Desde o fim dos anos 20, os comunistas eram uma das principais forças políticas no cenário chinês, atuando em aliança com Chiang Kaishek, o líder do partido nacionalista Kuomintang. Mas um massacre de 5 mil operários pró-comunistas, em 1927, em Xangai, selou o fim da aliança. Com o ataque japonês à Manchúria chinesa, em 1931, a aliança foi reconstituída, para explodir outra vez no final da Segunda Guerra Mundial. No vácuo de poder deixado pela retirada das forças de ocupação japonesas, os comunistas avançaram para a vitória.
No primeiro dia de outubro de 1949, há 50 anos, uma multidão saudava, em Pequim, o líder Mao Tsetung, que viria a se tornar o “Grande Timoneiro” da República Popular da China.
A vitória de Mao assustou o Ocidente. Era meio caminho andado para que os comunistas chineses ajudassem seus companheiros de ideologia a chegarem ao poder na Indochina, Indonésia e Filipinas, onde as estruturas de poder também não haviam sido reconstruídas, após o fim da ocupação japonesa.
A chegada de Mao ao poder também daria o sinal para o início do conflito na Coréia, país dividido, desde a derrota dos japoneses, entre um regime comunista estabelecido na porção norte e o governo pró-americano do sul. Acima de tudo, o triunfo vermelho na China parecia inclinar o mundo, de vez, rumo ao confronto entre capitalismo e comunismo.
Derrotado por Mao Tsetung, Chiang Kaishek liderou a migração de milhões de refugiados para a ilha de Taiwan, 170 quilômetros ao largo do litoral chinês. Na província, sob a proteção dos Estados Unidos, constituiu o regime rebelde da República da China. Mao, por sua vez, construiu um regime comunista inspirado na União Soviética, com quem romperia em 1960. Hoje, sob o “capitalismo vermelho” dos sucessores de Deng Xiaoping, a imagem do “Grande Timoneiro” tornou-se adorno exótico de bonés, chaveiros e isqueiros vendidos para turistas do mundo todo.
Boletim Mundo Ano 7 n° 6
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