quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

CORTE PERMANENTE JULGARÁ CRIMES DE GUERRA E GENOCÍDIO

Flávia Piovesan
Conferência da ONU, inspirada no exemplo do Tribunal de Nuremberg e nas experiências da Bósnia e Ruanda, derruba objeções de Washington
Ao longo do nazismo, 16 milhões de pessoas foram encaminhadas a campos de concentração, 11 milhões neles morreram, sendo que deste universo 6 milhões eram judeus. Negava-se a condição de sujeito de direito a toda e qualquer pessoa que não pertencesse à “raça pura ariana”. Vigia a lógica do extermínio e da descartabilidade humana, o que marcou um dos mais dramáticos genocídios da história da humanidade.
A Segunda Guerra Mundial (1939-45), ao mesmo tempo em que simbolizou as atrocidades do holocausto, produziu também a certeza de que a proteção dos direitos humanos não poderia se restringir à jurisdição de um Estado, mas deveria a ela transcender, significando um tema de legítimo interesse da comunidade internacional. Vale dizer, o que ocorrera na Alemanha durante a era Hitler não interessava apenas àquele Estado, mas ao mundo como um todo.
Por sua vez, a internacionalização dos direitos humanos conduziu à flexibilização da soberania nacional  na medida em que se passou a admitir intervenções internacionais em prol dos direitos humanos  e à cristalização do indivíduo como sujeito de direito internacional - na medida em que o indivíduo passou a ter direitos assegurados na ordem internacional.
No esforço da reconstrução da dignidade como valor inerente à condição de pessoa e dos direitos humanos como valor a orientar a comunidade internacional, o pós-guerra estimulou a criação da Organização das Nações Unidas, em 1945. Em 1945-1946, era instituído o Tribunal de Nuremberg, com a competência de processar e julgar os crimes de guerra, os crimes contra a paz e os crimes contra a humanidade  cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1948 era aprovada a Declaração Universal de Direitos Humanos. Também em 1948 era adotada a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, que reafirma ser o genocídio um crime contra o Direito Internacional e dispõe que as pessoas acusadas de genocídio serão julgadas pelos tribunais competentes do Estado em cujo território foi o ato cometido ou por uma Corte Penal Internacional.
Desde 1948 discute-se a criação desta Corte Internacional. Em 1993 e 1994 foram criados, respectivamente, por resolução do Conselho de Segurança da ONU, Tribunais Internacionais “ad hoc” (temporários) para julgar os crimes contra a humanidade perpetrados na antiga Iugoslávia e em Ruanda.
No mês de julho, passados cinqüenta anos, surgiu a oportunidade histórica de criação de um Tribunal Internacional Criminal Permanente, que significará um decisivo avanço para a proteção dos direitos humanos, quando as instituições nacionais mostram-se falhas ou omissas na salvaguarda destes direitos.
Entre 15 de junho e 17 de julho, em Roma, na Conferência da ONU sobre a criação da Corte Internacional Criminal Permanente, mais de 120 Estados debateram a matéria, buscando consenso sobre a composição, a estrutura e a competência deste Tribunal.
Entre as questões centrais, destacaram-se:
a) a definição de crimes de guerra;
b) a legitimidade para encaminhar um caso à apreciação do Tribunal;
c) a independência e os poderes de investigação da promotoria;
d) a relação do Tribunal com o Conselho de Segurança;
e) a jurisdição automática do Tribunal ou a necessidade de autorização do Estado para a abertura de um caso.
Às discussões jurídicas conjugaram-se ainda os interesses políticos, particularmente de alguns membros permanentes do Conselho de Segurança (notadamente os Estados Unidos), que procuraram assegurar-se de um poder de veto em relação às atividades do Tribunal, negando a independência e a efetividade que ele deve ter para investigar, processar e punir crimes contra a humanidade, onde quer que eles ocorram. No final, uma ampla maioria derrotou as principais objeções americanas, impedindo que o Conselho de Segurança controle o Tribunal.
As experiências recentes dos tribunais temporários da Bósnia e Ruanda revelam a importância da criação de uma jurisdição internacional para os crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade.
O estatuto do Tribunal permanente ficou aquém das expectativas. Ele não ampliou o conceito tradicional de crimes de guerra. deixando de introduzir o estupro e outras violências sexuais perpetradas durante a guerra como forma de tortura. Também não assegurou o pleno acesso ao Tribunal às vítimas e a entidades da sociedade civil. E, pior, só prevê a abertura de processo mediante a concordância do país onde os crimes foram cometidos ou do país no qual o acusado tem cidadania, limitando assim os poderes da Corte internacional.
Mas o estatuto incorpora as garantias processuais que asseguram um julgamento justo, com a observância da independência da promotoria e dos princípios do contraditório, ampla defesa e do devido processo legal. O Tribunal Internacional Criminal deve se instalar em Haia (Holanda), após um processo de ratificação do tratado que pode demorar um ou dois anos. Ao longo dessa trajetória, os Estados devem lembrar que, desde a Segunda Guerra Mundial, mais de 250 conflitos eclodiram, deixando mais de 170 milhões de vítimas, que sofreram cruéis violações de direitos humanos e guardam a esperança de que a justiça um dia seja feita.
Boletim Mundo Ano 6 n° 4

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