terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

GUERRA NA CAXEMIRA TESTA EQUILÍBRIO REGIONAL

Sobre o pano de fundo da campanha da Otan na Iugoslávia, o conflito entre a Índia e o Paquistão reativa o debate em torno de um eixo anti-americano formado pelos três gigantes asiáticos.
Em seu último relatório anual, o Instituto Internacional de Pesquisa da Paz, de Estocolmo, definiu como “intratável” a questão da Caxemira. Ela reúne os mesmos ingredientes (ultra nacionalismos e conflitos étnicos e religiosos) que fizeram os Bálcãs saltar pelos ares mais uma vez, com o envolvimento direto das potências européias lideradas pela superpotência que quer ser a cabeça dominante de uma ordem pós- Guerra Fria.
Encravada no Himalaia, a Caxemira é habitada em mais ou menos 75% por muçulmanos, mas seu marajá de origem hindu, na época da independência, julgou que seria melhor escapar de um Estado islâmico o Paquistão  e juntar-se a um secular, a uma sociedade mista embora de predominância hinduísta, a Índia. Desde 1972 existe uma “linha de controle” imposta militarmente pela Índia que é, na prática, fronteira entre os dois países e equivale a uma anexação parcial da Caxemira indiana.
A dificuldade em resolver o conflito está no fato de que a Caxemira tornou-se ponto central dos ideais nacionais tanto da Índia como do Paquistão. A Índia teme que uma eventual perda da região resulte numa onda de movimentos separatistas em outras partes do país. Também significaria aceitar a morte da premissa original da Índia – a crença de que ela integraria povos de diferentes religiões. Gandhi deu a vida por isso. Já o Paquistão nasceu disposto a ser o único lar de todos os muçulmanos do subcontinente e considera intolerável que a Índia continue com os pés na Caxemira. A disputa assume a dianteira entre as de maior potencial de combustão em todo o mundo e envolve mais de um bilhão de pessoas.
Em maio, primeiro a Índia e depois o Paquistão fizeram explosões nucleares e se declararam potências atômicas.
Alarma geral e apelos renovados para que os dois se entendessem e apagassem de vez um fogaréu que poderá transformar o Himalaia no ponto focal de uma guerra nuclear. Para piorar, cientistas indianos revelaram que um dos testes, o maior da série de cinco, foi com bomba de hidrogênio, engenho conhecido entre militares americanos como city-buster pela sua enorme capacidade destrutiva.
A questão “intratável” da Caxemira se situa num quadro geopolítico com presenças destacadas da China e Rússia e se projeta na espiral de conflitos inerentes à montagem de uma ordem pós-  Guerra Fria. Alto funcionário indiano disse na ONU que o fim da Guerra Fria produziu um vazio de poder em extensas regiões que vão da Ásia central à África. Foram mudanças no “clima de segurança global” que, em última instância, conduziram a Índia a tomar a decisão de testar armas nucleares.
Coincidindo com a nova troca de tiros na Caxemira a World Affairs, dos Estados Unidos, publicou ensaio renovando preocupações com a “cooperação técnico-militar entre Índia e Rússia”, legado da Guerra Fria com sobrevida que surpreende e assusta. Seria componente de um painel traçado por acadêmicos americanos, numa reunião em Harvard, a partir da constatação de que pelo menos dois terços da população mundial (chineses, russos, indianos, árabes e africanos) vêem os Estados Unidos como a grande ameaça externa às suas sociedades. Um desses acadêmicos, Samuel Huntington, teórico do “choque de civilizações”, acha que há motivos para essa percepção e escreveu na Foreing Affairs que não se trata apenas de temor diante da formidável máquina militar americana.
Potência “intervencionista, unilateral, hipócrita, com um peso e duas medidas, empenhada em impor imperialismo financeiro e colonialismo intelectual”, segundo Huntington os Estados Unidos assumem a imagem de ameaça “à integridade, prosperidade e liberdade de ação” de muita gente pelo mundo afora.
Bombardeios do Sudão, Afeganistão, Iraque, Iugoslávia.
Pesquisa feita no Japão em 1997, época do encontro em Harvard, constatou que a maioria dos japoneses considera os Estados Unidos a segunda maior ameaça à sua nação, só superada pela Coréia do Norte e suas ambições nucleares. Para os chineses, é o que diz artigo no New York Times, os ataques à sua embaixada em Belgrado “resumem quase tudo o que Pequim acha ofensivo por parte dos Estados Unidos”. Por exemplo, o “cru exercício de poder hegemônico”. Num mundo “onde a Otan agride impunemente um Estado soberano, é mais do que justificada a nossa procura de segurança”, declarou um comunicado do governo indiano.
Álibi para a posse de armas atômicas, pano de fundo nada agradável da idéia de formação de eixo “anti hegemônico” reunindo China, Índia e Rússia. O então primeiro-ministro russo Yevgueni Primakov lançou a idéia em dezembro. Históricas divergências entre os três pareciam bloqueá-la. Mas, em maio, o embaixador da China na Índia anunciou ter chegado a hora de os “três gigantes asiáticos se juntarem para velar por sua segurança mútua num universo unipolar”. Comentário da rádio Voz da Rússia garantiu que a união dos três “terá condições de impedir que países não pertencentes à Otan sofram o mesmo que a Iugoslávia”. Diplomatas indianos atribuem a “forte reação” da Índia à crise de Kosovo “à tendência da Otan em usurpar poderes e funções do Conselho de Segurança da ONU”, o que “inquieta a todos ao países, grandes e pequenos”.
A Índia dificilmente cumprirá a promessa de assinar o tratado de proibição total dos testes nucleares, apesar das sanções americanas, e “sugere” que considera “seriamente”a proposta de criação do eixo de gigantes asiáticos.
Aliados do Paquistão, os Estados Unidos, premidos por todos esses fatores, agora surpreenderam aceitando a vigência da “linha de controle” na Caxemira e apelando para a retirada paquistanesa de “território indiano”.
Os Estados Unidos adotam “posição similar à da Índia no conflito”, avaliou um analista do Centro de Estudos Estratégicos Internacionais de Washington. Reviravolta em relação aos tempos da Guerra Fria, quando a Índia era hostilizada pelo seu não-alinhamento e sua cooperação técnico-militar com Moscou.
Na guerra de 1971 entre Índia e Paquistão, que deu origem a Bangladesh, os Estados Unidos chegaram a mandar sua Sétima Frota, de modo ameaçador, para o golfo de Bengala. A Índia, no entanto, que criticou os ataques ao Iraque e à Iugoslávia, continua partidária de um mundo multipolar e não aceita o que chama de “apartheid nuclear”, o monopólio das armas atômicas pelos cinco integrantes do Conselho de Segurança da ONU.
Mas teme que possa suceder na Caxemira o mesmo que aconteceu em Kosovo. Afinal, trata-se da única parte do país com maioria muçulmana.
Boletim Mundo Ano 7 n° 4

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